Todos os dias, Maria Flor almoçava com um homem que abaixava o seu olhar sobre o prato, enquanto pedaços dos seus pensamentos iam se empilhando sobre a comida. E mesmo quando Paulo erguia os olhos e a elogiava, alguma coisa se esvaía pelas fendas do garfo. Depois, quase ao mesmo tempo, eles rasgavam um pedaço de pão com a ponta dos dedos, para umedecê-lo no molho sobre o fundo do prato, mas até quando os seus olhos se encontravam, alguma coisa se perdia junto aos farelos de pão – os farelos que ela recolhia da mesa, com todo o cuidado, para alimentar uns passarinhos no quintal.
Todas as noites, Maria Flor jantava com um homem que assoprava o silêncio na quentura da sopa, recolhendo das bordas o punhado mais frio. E mesmo quando Paulo erguia os olhos e a elogiava, alguma coisa evaporava do fundo do prato. Depois, quase ao mesmo tempo, eles procuravam um guardanapo para limpar o sorriso no canto dos lábios, e quase sempre conseguiam, recolhendo das bordas o punhado mais frio. E até quando ele erguia os olhos e a elogiava, alguma palavra se esmagava entre os dentes de trás.
Mas não era culpa dele e nem era culpa dela. Era a distância na mesa entre os farelos de pão. Era o vento levando das mãos a farinha de trigo. Era o grão que o tempo roubou da colheita, deixando secar sob o sol. Eram as flores secas enfeitando aquela mesa. Era Maria Flor, sentada num dos cantos da loucura, e Paulo no outro: da solidão.
Sobretudo, eram os silêncios que lhes traziam lembranças antigas. Lembranças de pássaros, amoras, vinhedos, brinquedos e de chuvas esquecidas. Era o invisível entre as duas cadeiras. Era a existência de ambos, sempre um pouco só. E foi por ela que, um dia, Maria Flor abriu as janelas do quarto, e algumas cartas clandestinas ela começou a escrever. Eram cartas para os desconhecidos, mas, sobretudo, eram cartas para Paulo, que ela espalhava por toda São Paulo, para todos os Paulos que existiam no mundo.
Sim, ela precisava de escrever cartas porque, naquela casa, não havia ninguém a quem emprestar o seu silêncio: era um silêncio que ninguém ouvia. Era o mesmo silêncio da mesa, do banco, da estante, o mesmo silêncio das poeiras no chão. Ninguém mais se surpreenderia com o silêncio das coisas porque elas eram feitas para serem mudas, mas ali, naquela cozinha, Maria Flor era feita do mesmo silêncio das coisas, e tinha medo de: não-ser.
Tinha medo de empenar. Medo de ser atravessada por um fiozinho de gotas que ninguém veria. Medo de enferrujar os seus dedos na garoa tão fina de São Paulo. Medo das poeiras que viriam pousar bem de leve em seus ombros, e ninguém não viria espanar. Medo de que as teias de aranha se enroscassem em seus cabelos, levando os seus pensamentos com elas, presos como um mosquito. E medo até do que o vento poderia levar bem devagarinho. Maria Flor tinha medo de tudo. Tinha medo das árvores que cresciam para ninguém. Tinha medo do cachorro cego que tinha o dom para ser comum. Tinha medo das traças que comiam o silêncio das palavras escritas. Há alguns meses, Maria Flor tinha medo de tudo, mas tinha medo, sobretudo, de enlouquecer. Então, ela tinha se preparado para isso e, finalmente, estava pronta para que o nada jamais acontecesse. Era preciso estar preparada, era preciso sublimar-se, pois ela já tinha nascido, e agora o mundo era um útero largo demais.
Mas, às vezes, ela tinha o espanto do estreito: o de colher uma flor no seu jardim e guardá-la num copo com água, em cima da mesa, só para não morrê-la. Ah, o modo como ela olhava aquela flor… era como se ela estivesse mentindo, garantindo à flor que o raso de um copo d’água seria suficiente para revivê-la. Mas, no fundo, ela sabia: ela a tinha trazido, ela a tinha tomado para si, apesar de todo sol lá fora, apesar de toda a terra no jardim. Era isso o que, impunemente, ela fazia todas as tardes antes de antever as estrelas.
Mas, naquela noite, depois de escutar vozes o dia inteiro, Maria Flor abriu a gaveta da escrivaninha para pegar um estilete, e encontrou um caderno vazio. As páginas estavam um pouco amarelecidas, e havia poeira sobre a capa vermelha. Então, ela ficou olhando para o estilete, depois para o caderno, depois para o estilete, e ponderou que, ao invés de cortar os seus pulsos e colocar um fim à sua vida, ela poderia escrever os seus pensamentos naquelas linhas. Pelo menos, até que o caderno acabasse.
Ainda assim, ela pegou o estilete, observou atentamente a lâmina que brilhava e, no seu reflexo distorcido, enxergou o seu rosto pálido, as olheiras profundas, as pálpebras inchadas de tanto chorar, os seus cabelos negros, lisos e compridos, desgrenhados até a cintura. Então, com a mão ainda tremente, ela apertou o pulso enfraquecido e se perguntou: para onde ela queria se esvair? Até onde ela poderia escrever uma carta? Qual era a distância segura entre as palavras e o corpo? Ou entre os textos e a pele? Ou entre os tecidos e as teias? Que entre os seus olhos e os olhos de Paulo existia uma carta secreta que ela não podia abrir, e tinha medo; pois como deixar que ele enrolasse de volta as suas linhas sem junto embaralhar as suas veias? – ela se perguntava, um tanto confusa.
Desde que começara a enlouquecer, Maria Flor sentia as veias embaralhadas. E, naquele dia, a cada linha que escrevia, sentia as veias se embaralharem ainda mais. Primeiro, sentiu um certo formigamento nos pés. Depois, algum inchaço nas pernas. Ao final, começou a observar pequenas linhas coloridas marcando a pele. Eram linhas que formavam frases compridas ao redor do seu corpo, feito mapas que a conduziam aos lugares mais ermos de si mesma. Então, esfregou a superfície da pele com álcool e água sanitária, lavou com água e sabão, mas nada: as palavras continuavam intactas.
Se a sua avó ainda estivesse viva, ela pensava, poderia mostrar-lhe o emaranhado de frases que se formava sobre a pele. E a avó, certamente, diria apenas que as desembaraçasse porque o dia do juízo final estava para chegar. Havia algum tempo, a avó não se assustava com mais nada que a neta dizia, mesmo que fossem absurdos, como se o seu passado também fosse inventado. Ela apenas concordava e lhe trazia soluções que Maria Flor não sabia mais como colocar em prática. Mas ali, eram tantas e tão embaralhadas as linhas, que Maria Flor não distinguia mais o começo de uma ou o final da outra, e se cansou de ser.
Então, mostrou-as para Paulo, que se preparava para dormir ao seu lado, mas ele disse que não estava vendo frase alguma. Por isso, depois que ele se deitou na cama, Maria Flor foi até a sala, sentou-se no chão, encostada à parede e, com a cabeça entre as pernas, começou a chorar. Enquanto pensava que estava realmente enlouquecendo, e que a sua avó não estava mais por perto para reduzir o mundo às palmas das suas mãos, Maria Flor lambia as lágrimas que escorriam pela face, manchando a língua de tristezas. “Quando o vazio é muito grande, as lágrimas são transparentes” – ela disse em voz baixa.
Em seguida, pensou, assim por si, que ao invés de cortar os seus pulsos e colocar um fim à sua vida, ela poderia pegar algumas daquelas frases e escrever cartas aos desconhecidos. Depois, poderia deixá-las por aí: no metrô, no cinema, nos sebos e livrarias, nos museus e galerias de arte, nos cafés, nos ônibus, nos bancos das praças.
Sentiu o coração pulsar com força, a sua caixa torácica atravessada por mil pássaros, e decidiu que escreveria qualquer coisa que lhe viesse à mente, apenas para se manter viva e organizar os seus pensamentos, apenas para ter um corpo que abrigasse a sua mente. Então, quando chegasse à última linha daquele caderno, o tempo teria passado e, com mais calma, provavelmente, ela chegaria a uma boa conclusão sobre a sua vida: se esta valia ou não a pena ser vivida. Isto é: se, antes disso, ela não enlouquecesse por completo.
Mas, porque uma das vozes que Maria Flor escutava não parava de lhe chamar de louca, e de lhe chamar, e de lhe chamar, ela teve vontade de gritar bem alto. Mas, como Paulo estava dormindo no quarto, ela não disse nada e também nada escreveu. Apenas olhou o emaranhado de palavras sobre a pele. Algumas frases tinham o poder da folha em branco. Quando uma delas a acertou, Maria Flor abandonou todas as suas respostas, pois era inútil escrever de branco sobre as folhas brancas, como ela vinha fazendo nos últimos dias. Só o vento, quando escrito, ficava nas folhas em branco.
Depois, quando a sua caneta transparente estourou frases dentro da bolsa: foi um grande silêncio. Maria Flor até se assustou. Então, esperou qualquer coisa sumir, alguma ideia aparecer, o vento passar… mas nada. Sem que fizesse coisa alguma, sem que gritasse, sem que discutisse com as vozes, sem que acordasse Paulo, Maria Flor escutou o silêncio. Por alguns minutos, escutou as aranhas tecendo os fios atrás do armário, escutou o sol evaporando as poças do chão, no outro lado do mundo; escutou as plantas, escutou o seu sangue correndo por dentro das veias, escutou a lagarta roendo as folhas das árvores, escutou as nuvens se movendo no céu, escutou o movimento dos planetas no espaço, escutou as poeiras pousando no chão, escutou os olhos lânguidos dos pássaros, escutou as pausas dentro dos compassos, escutou até mesmo as pausas dentro do próprio silêncio. Enfim, ela escutou o silêncio do mundo.
Então, foi até o canto da sala e procurou um dicionário na estante, um dicionário que o traduzisse, mas era um silêncio intraduzível, um silêncio calado em português muito antigo, um silêncio muito velho, como se ele estivesse enterrado há milhares de anos, e fosse encontrado naquele momento, em meio às escavações do mundo. Não, era mais do que isso – ela pensava, enquanto procurava as palavras no dicionário, um tanto aflita. As frases do seu corpo estavam escritas em uma língua morta de uma terra devastada. Como se ela tivesse inventado uma língua estrangeira apenas para existir sozinha, ou para se comunicar com ninguém, ou para ficar em silêncio, e pudesse, com aquela nova língua, traduzir a solidão para os abismos. Era tudo o que podia fazer – continuava pensando.
Assim, voltou para o quarto, colocou o estilete dentro da gaveta, fechou o caderno, guardou a caneta numa pequena caixa, foi até a varanda da sua casa, olhou as plantas que se amontoavam perto da janela e, com muito esforço, traduziu uma das frases que cobria o seu braço: “Quem não compreende o silêncio ainda não está pronto para ser uma flor.”
Então, pensou em colocar um pouco de água nas plantas porque as plantas nunca eram ferozes. Enquanto as regava, Maria Flor esperou que as flores avançassem sobre ela ou sobre o copo de água, mas elas apenas murchavam para dentro, apenas ressecavam em sua sede violenta. Era um copo de sede o que ela tomava em seus lábios ressequidos? Era uma sede que não tinha mais fim? – ela se perguntava, enquanto regava uma bromélia com cuidado para a água não se espalhar sobre a mesa.
Então, umedeceu os lábios com a ponta da língua e o que percebeu foi que estava tão seca quanto uma planta em sua muda ferocidade, e que estava aos poucos desistindo da vida. Mas, se estava pensando em desistir, que não levasse junto suas flores porque elas não queriam deixar um planeta em que, milagrosamente, chovia. Elas precisavam de água para sobreviver: e chovia. Não apenas chovia, como chovia do céu. Meu Deus. Era coincidência demais para prescindir da vida – ela também pensou. Era inevitável que os homens primitivos tivessem inventado um Deus que explicasse tantas coincidências no mundo.
Além disso, havia uma flor naquele vaso, uma flor que lhe chamou a atenção: no dia anterior, ela estava quieta, recolhendo os resquícios de sol e de chuvas esquecidas, mas, ali, naquela hora, ela estilhaçava o invisível com uma pequena folha ainda verde. Maria Flor não sabia se as vozes ainda conseguiam ver as coisas através dos seus olhos, mas aquela era uma flor para fora. Era uma flor que invadia o mundo, subitamente, com alguma beleza. Era uma flor que abria o vazio com algumas pétalas, despejando as suas cores ao redor. Era uma flor que não tinha medo. Ela existia.
Então, com muito esforço, Maria Flor apanhou o regador, aquela mentira de chuva que ela tinha de contar às flores todas as manhãs, e regou as plantas bem lentamente, até o silêncio se molhar e se espalhar pelo chão. Depois, encostou-se na parede da varanda e foi deslizando até se sentar sobre os calcanhares, com a cabeça entre as mãos. Havia ocasiões, como aquela, em que ela escutava o silêncio se esbarrando nas coisas imóveis. Então, ela percebia que era só o silêncio: sendo o silêncio, mesmo. Em outras vezes, contudo, quando as vozes que escutava estavam muito irascíveis, Maria Flor se desesperava, tampando os ouvidos com as mãos. Era preciso criar um instrumento que tocasse o silêncio sobreposto ao ruído! – ela pensava. Era preciso criar um instrumento que tocasse o silêncio sobreposto a todas as vozes! Um silêncio ainda mais grave e o outro mais agudo, mais alto do que o seu ritmo cardíaco, mais alto do que todos os seus pensamentos! – ela continuava pensando, muito aflita.
Por isso, depois que as vozes se acalmaram, ela continuou traduzindo as frases que apareciam em seu braço: “A música foi a grande decisão do homem em abraçar o invisível.” E ficou pensando muito naquilo. Todo um império do invisível fora criado e, por isso, ela podia ver a música de olhos fechados, especialmente aquelas que tocavam na rádio de Aureliano. Será que a música era uma carícia que não encostava ou era uma fenda que se abria no meio do silêncio? – ela se perguntava, enquanto retirava algumas folhas secas dos vasos de plantas.
Na primeira camada do mundo, quando tudo estava dormindo, era o silêncio quem tocava sem parar. Todas as coisas eram naturalmente silenciosas, mas, em todas elas, um som estava colado, na iminência de se transformar em ruído. Maria Flor não podia sequer mover as coisas de lugar que elas já faziam barulho. Quando as coisas caíam no chão, gritavam estrondos. Então, o silêncio não se quebrava, ele se estilhaçava – ela continuava pensando.
Em seguida, lembrou-se das madrugadas na casa da sua avó. Antigamente, no quintal onde ela brincava, os grilos apagavam o silêncio da noite, mas ali, na cidade de São Paulo, o silêncio havia vencido os grilos. Só as coisas imóveis e mortas conversavam no silêncio do mundo. E também as plantas. E também as árvores. E também as flores.
Por isso, ela ficou pensando em todas as conexões do planeta: o seu aparelho auditivo não sabia que as coisas e os seres faziam barulho e, mesmo assim, ela tinha nascido com um ouvido para escutá-los. Não era incrível como as coisas e os seres faziam barulho e ela tinha ouvidos justamente para escutá-los? Não era incrível como as frutas tinham sabores diferentes e ela tinha uma língua justamente para senti-los? Não era incrível como as coisas e os seres tinham cores e formas variadas e ela tinha olhos justamente para enxergá-las? De certa forma, isso conectava o seu corpo ao funcionamento do mundo. Ela precisava de oxigênio, e o oxigênio existia no ar. Ela precisava de água, e a água existia nos rios, na chuva e no mar. Até caía do céu. A sua existência não era aleatória. De certo modo, ela não era desvinculada do planeta. Tudo estava conectado. Então, ou Deus existia de verdade ou o mundo era muito velho em coincidências.
De alguma forma, era o sentido da vida que ela estava buscando, sem conseguir encontrar. O que saíra errado no mundo era um animal comer o outro. Isso não saíra certo – ela continuava pensando, enquanto ajeitava os vasos sob a janela. Além disso, por que algo que estava tão conectado ao planeta – o seu corpo – algum dia, simplesmente iria acabar? Talvez, existisse realmente algum mistério por trás de tudo, que a sua avó chamava de Deus. Por que Deus? Talvez, porque os seus olhos só estivessem acostumados com eternidades, não estivessem conformados com o que era pequeno ou efêmero.
De qualquer modo, eram tantas as coincidências no mundo que Maria Flor ficou pensando: morrer seria um grande desperdício. Mas, então, por que a sua vida era tão frágil? Se tudo iria acabar, afinal, por que ela não era simplesmente uma pedra? – Maria Flor perguntava-se enquanto retirava alguns pedregulhos do seus vasos de girassol. Se ainda ela morresse e se transformasse numa flor ou numa árvore, tudo estaria certo, mas nem tudo estava certo no mundo. Afinal, se ela morresse, ela não viraria coisa alguma. Ela morreria para se acabar. E, se fosse para se acabar, por que ela pensava em tantas coisas? Por que ela sentia tanto? E por que os seus pensamentos e sentimentos lhe pareciam tão importantes? Por que eles lhe pareciam únicos? Então, Deus não pensava nos desperdícios de findar um pensamento tão único? Não, não pensava? Ah, por isso, precisava de escrever os seus em diários e cartas aos desconhecidos, para que nem tudo se acabasse, para que seu pensamento resistisse depois de sua morte, como o próprio ser humano fizera durante milênios depois de inventar a escrita. Não, ela não poderia morrer antes de escrever os seus pensamentos em algum lugar. Antes de escrever, escrever e escrever.
Por isso, no outro dia, depois que Paulo saísse para o trabalho, ela arrumaria a sua mochila e, dentro dela, guardaria o seu caderno vermelho, algumas canetas, alguma comida, algum dinheiro, as oito cartas que escrevera para os desconhecidos, os envelopes que havia comprado há alguns meses e sairia por aí, viajando algumas quadras até chegar à rádio de Aureliano. Enquanto andasse pelas ruas da cidade, ela escreveria mais algumas cartas – ela continuava pensando enquanto retirava mais alguns pedregulhos das plantas.
No quintal onde cultivava as suas plantas, as pedras nunca lhe contavam o quanto eram velhas, tão velhas quanto o início do mundo, talvez, ou o modo como se gastavam tão devagar. Será que uma pedra sempre existiu? – ela se perguntava. As pedras não refletiam, não sentiam, não sofriam, mas existiam por muito mais tempo do que ela poderia existir. Qual seria a idade daquele pedregulho? Cem anos, duzentos anos, mil anos, talvez? Viera de onde, de uma grande pedreira? Viera do início do mundo? Quando era aqui?
Então, Maria Flor lembrou-se do estilete sobre a escrivaninha e pensou que viveria alguns dias a mais, para ver o que lhe aconteceria nos dias seguintes, enquanto andasse pelas ruas da cidade, colhendo as pedras do chão e as guardando no bolso, enquanto pensasse nas cartas que ela escreveria aos desconhecidos. Será que eles lhe responderiam? Será que ela faria uma grande amizade? Ou será que um ladrão descobriria o seu endereço e viria lhe assaltar? Será que o mundo também a chamaria de louca como Paulo fizera naquela tarde? Será que todos os Paulos a chamariam de louca também? E, afinal, seria muita loucura escrever cartas às pessoas que ela não conhecia? – ela se perguntava, enquanto jogava algumas folhas secas no lixo. Aos poucos, os vasos iam ficando verdes e viçosos novamente. O seu trabalho – de jardinagem – era o que a deixava viva no mundo, e por isso trabalhava até de madrugada.
Se, ao menos, houvesse uma boina para ela guardar a sua loucura, ela pensava, ela não se importaria de estar enlouquecendo, como Paulo dizia que ela estava, de fato. Ela poderia usá-la somente às vezes, só quando tivesse o cabelo embaraçado de chuvas. Maria Flor até que gostou daquela ideia. Por isso, pé ante pé, foi até o guarda-roupa e, silenciosamente, revirou a gaveta e a prateleira, mas não encontrou boina alguma onde pudesse guardar os seus pensamentos. Já havia procurado por toda a parte, por dentro dos armários, da cômoda, num amontoado de roupas velhas, por dentro de uma mala debaixo da cama, mas não encontrara aquela boina em lugar algum, e se cansou de ser. Sairia pelo mundo sem a boina, e sem o juízo, mesmo. Com a sua loucura descoberta. Afinal, ela, a sua loucura, não se guardava dentro de casa. Por isso, ela andava com ela a céu aberto, onde as estrelas conseguiam espiá-la – Maria Flor continuava pensando, enquanto dobrava as roupas e as guardava no fundo do armário.
A sua loucura era como sonhar acordada. Era como abrir os olhos, e o sonho continuar vivendo nas suas retinas. Mas era preciso que o seu travesseiro fosse feito de flocos muito finos para que ela não tivesse pesadelos, ou pensadelos. A sua loucura não se guardava em gaveta alguma. Por isso, andava com ela desordenada em sua cabeça, revoando pássaros no peito. Os pássaros que invadiam o seu quarto e que só ela era capaz de ver. Os pássaros que não queriam se mostrar para Paulo e para mais ninguém.
No fundo, não se sentia louca, como Paulo a chamara. Sentia-se uma escolhida por ver as coisas que ninguém mais via, por escutar as pessoas que ninguém mais escutava, por sentir os cheiros que não existiam para mais ninguém, por entender os códigos secretos que ninguém mais entendia. Então, aquilo era a loucura? Adentrar um mundo onde só ela sabia entrar? A sua loucura era um portal ao inexistente. Mas quem poderia dizer que o inexistente não existia em algum outro lugar do Universo? Será que ela enxergava, escutava e sentia só as coisas do seu passado? As coisas e os seres que não existiam mais? Será que ela estava perdida em alguma fração do tempo? Será que os seus olhos só enxergavam através do tempo? Não, ela não sabia, mas sentia que a sua loucura era da cor das nuvens antes da trovoada. E isso era tudo – ela continuava pensando, enquanto guardava algumas roupas no cabide.
Depois, voltou às plantas da varanda e respirou fundo, afundando os dedos na terra fofa. Precisava encharcar as plantas para que elas aguentassem alguns dias sem água, até que ela voltasse da sua pequena viagem. E, depois, ficou pensando, quando ela saísse de casa, compraria mais sementes de girassol porque havia isso de extraordinário no mundo: quando alguém se sentia só ou com saudade de outrem podia comprar sementes de girassol para vê-lo crescer. Podia até mesmo fazer uma sementeira de violetas. Nesse caso, era preciso aguar todos os dias, com a ponta dos dedos, deixando cair algumas gotas, apenas. Já as coisas abrutalhadas, máquinas, tratores ou edifícios, ela deixaria para que os outros cuidassem: também elas precisavam de carícias. À tarde, não vira um homem pendurado nas vidraças com um pano molhado? Não vira a máquina acarinhando a outra com a lixa? Havia muitas formas de cuidar e, felizmente, o delicado e o bruto na esfera do mundo. Se ela se ocupava de uma semente é porque escutava o seu silêncio. O silêncio com que a semente abraçava, tão brandamente, o seu grãozinho de terra. Era bonito, sim. Havia coisas belas no mundo. Então, por isso, ela não iria se matar – ela continuava pensando, enquanto limpava a terra que caíra na mesa da varanda. Aos poucos, tudo ficava limpo de novo.
Ela quase não tinha o controle de nada, pois um dia nascera à revelia de si, sem decidir coisa alguma, sem saber como ou por quê, acontecida. Sim, ela era acontecida no mundo, ela era de repente, mas, ao menos, nunca tinha culpa quando uma flor se abria, mesmo se os seus olhos se esbarrassem na primavera. Ela era inocente. Ela merecia viver – ela continuava pensando, enquanto varria algumas folhas secas do chão. Havia infinitas mortes dentro da vida, ela mesma já tinha testemunhado algumas: a do seu cão, a do seu peixe, a do seu avô e da sua avó, a do seu vizinho, a do seu tio. Havia incontáveis segundos virando memória, e agora, e agora, e agora, mas se Deus tinha perdido o controle do mundo, ela não perderia o seu também. Oh, não, não perderia, não. Que Deus cuidasse de suas plantinhas e recuperasse o tino de viver. No fundo, acreditava que Ele só criara a noite para preparar os homens para a morte. Não, Deus não era bruto. O amor de Deus amortecia o mundo, e isso era tudo.
Então, olhou para o próprio braço e leu mais uma frase: “A gente dorme de olhos fechados que é para poder sonhar por dentro, amor.” Por isso, lavou as mãos, voltou ao quarto, deitou-se com todo o cuidado na cama, ao lado de Paulo que já dormia, e tentou dormir. Virou de um lado ao outro com cuidado, tentando não acordar o noivo, mas não conseguia parar de pensar. Pensava na sua pequena viagem, e pensava tão alto que, às vezes, olhava para Paulo, certificando-se de que ele não a escutara. Depois, quando pensava que estava pensando, aí mesmo é que não conseguia dormir de jeito nenhum.
Estava com sono, mas a hora do sono era muito vulnerável, e ela sabia que ficava muito vulnerável quando dormia. Qualquer coisa poderia lhe acontecer quando dormisse. Por isso, olhou o desenho que as sombras do abajur faziam nas paredes. Algumas sombras tinham grudado e não saíam mais, até elas estavam escoradas de cansaço, ou era o modo como a parede tinha de abraçá-las. Queria que Paulo a abraçasse, mas desde que ele começara a chamá-la de louca, não a abraçava mais como antes. Quando o fazia, era um abraço empalhado, um espantalho que abria os braços apenas para espantar os corvos.
Depois, quando ele saía para o trabalho, aquele quarto ficava grande demais, e ela só queria um quarto onde só coubesse o seu corpo, uma casca de concreto ao redor de si. Ela não queria muita coisa, ela só queria que as paredes a abraçassem, que alguém a abraçasse.
Mas ali, de tanto olhar as paredes na penumbra do quarto, ela pensou que era por isso que os seres humanos inventavam casas que se fechavam e se trancavam. De certo, para que ninguém pudesse adentrá-las enquanto eles estivessem dormindo. Havia, portanto, uma tendência natural para o fechamento de si diante do mundo. Ela se fechava dentro de casa, dentro do quarto e, depois, também fechava os seus olhos. Tudo antes de dormir. Se pensasse que a sua casa era segura, ela se entregaria à inconsciência do sono durante muitas e muitas horas. Até mesmo quem não tinha paredes para se proteger, quem vivia no meio da rua, adormecia sem ter um abrigo, pois o sono era algo inevitável – ela pensava, enquanto virava para o outro lado da cama. E todo mundo, com ou sem casa, tentava criar alguma forma de proteção. Era muito provável que, se ela conseguisse dormir naquela noite, ela acordaria intacta no outro dia, sem que nenhuma fera a tivesse devorado. O mundo era tão perigoso, havia tantos perigos ao seu redor, mas ela dormia quase todas as noites durante muitas e muitas horas. Era inevitável soltar a guarda. Era incontrolável fechar os olhos e se desligar de tudo. Todas as noites, ela se deixava morrer, na esperança de alcançar o amanhã, na esperança de que o amanhã chegaria, ó sim. Mas ela nunca o alcançava, pois ele sempre se transformava num hoje, depois num hoje, depois num hoje, infinitamente. Nunca conseguira tocar o futuro, nunca conseguira tocar o tempo, nem mesmo o presente, só conseguira tocar as mãos e o rosto enrugados de sua avó, e eles eram tão vastos; as rugas: sobrepostos de agoras – ela continuava pensando enquanto se virava mais uma vez na cama, com todo o cuidado para não acordar Paulo.
Não é que ela tivesse medo dos amanhãs, mas os amanhãs não combinavam nada de antemão, e ela tinha sempre de viver aos improvisos, com uma venda atada aos seus olhos. Os seus olhos que nada viam adiante. Ora, isso lá era uma vida que se vivesse? A vida tinha de ser toda gravada, repetível, pausável, mas o amanhã atravessava tudo, como sempre. Não havia luz no mundo capaz de antever o acaso, e ela precisava de ter algum controle sobre a alegria, especialmente, sobre aquela que ela daria para alguém – ela continuava pensando, enquanto colocava um outro travesseiro no meio das pernas. Mas era provável que, naquela noite, se ela dormisse muito profundamente, se ela se entregasse ao mais completo sono, no outro dia, ela acordaria sabendo que dormira no dia anterior, ela reconheceria uma pausa entre os dois períodos de vida. Se ela acordasse sendo a mesma pessoa, o seu cérebro se reconheceria. Era provável, então, que, se ela tivesse memória para costurar um dia no outro, apesar do sono, essa pequena morte inconsciente, depois, ela conseguiria sair daquele quarto, sair daquela casa, sair de si mesma, escrever as cartas para os desconhecidos e ir até a rádio de Aureliano. Mas o mais estranho é que a inconsciência do seu sono não se despejaria na sua consciência, não se espalharia nos dias que ela vivera, não apagaria tudo o que ela testemunhara, não iria se confundir com a realidade, mesmo se ela fechasse os seus olhos e se entregasse à mais completa escuridão – ela continuava pensando, enquanto se cobria com o lençol e sentia um perfume de flores e de plantas. Bastava fechar os olhos e dormir, apenas isso. Fechar o olhos e dormir. Mas não, ela não conseguia, meu Deus…
Então, virou-se de um lado ao outro e continuou pensando. Por que ela tinha medo de dormir no escuro, se o escuro era tudo o que ela via quando fechava os seus olhos? Por que padecia tanto sono se, no sono, ela nada via? Por que a escuridão dos seus olhos levava aos poucos os seus sentidos? Por que, toda noite, ela precisava desistir e se abandonar até adormecer? E por que, desperta, ela piscava tão rápido, frações mínimas de segundo, para umedecer uns olhos já tão alagados de medo? E por que, no medo, ela os fechava: uma gruta gotejando ao explorador a descoberta dos musgos, se tão escura, silenciosa e apartada do mundo? Quem haveria de saber? Fosse lá como fosse, dali a pouco, ela dormiria, os pássaros dormiriam, todo um lado do mundo dormiria também. Todas as noites, durante quase oito horas, o mundo se apagava para ela, enquanto ela sonhava exaustivamente histórias que só aconteciam dentro de sua cabeça, histórias que ninguém mais conseguia ver. Isso também não era estranho? – ela se perguntava confusa, enquanto observava os pássaros que se amontoavam sobre a cama. Ninguém estava louco por sonhar. O mundo ainda a deixava sonhar, a polícia ainda a deixava sonhar, isso ainda era permitido nas leis e na Constituição Federal. Por isso, para poder viver entre as pessoas, ela não poderia ter culpa do sonho, ela deveria ser inocente quando abrisse os olhos pela manhã. Mas, dependendo dos pesadelos e do quanto eles pesassem em seus olhos, os seus sonhos poderiam cair e se espatifar pelo chão, e ela teria de tomar todo o cuidado ao andar descalça entre eles. Havia muito tempo, ela tinha os pés feridos de pesadelos – ela pensava enquanto, sem saber o que fazer, via um dos pássaros alados se aninhar ao seu lado.
De qualquer modo, todas as pessoas sonhavam e, nem por isso, elas estavam loucas. Isso eles ainda aceitavam. Isso ainda era permitido. Ninguém era condenado por sonhar os piores sonhos possíveis. Ninguém era julgado por ter tido um pesadelo. Mas era preciso estar com os olhos bem fechados, imóvel sobre uma cama, inofensivo. Era preciso ser inocente do sonho que se sonhava, que ele fosse involuntário, pois o que acontecia no sonho de um não alcançava o sonho do outro. Os sonhos ainda eram incomunicáveis e não podiam ser compartilhados nas redes sociais. Os seus sonhos não tinham cúmplices. Ela também sonhava muito sozinha, nunca sonhara acompanhada de ninguém, nunca sonhara a quatro mãos, e acordava mais sozinha ainda, pesando muitas cenas no seu travesseiro.
Por isso, todas as noites, ela fechava os seus olhos e sonhava por cima da escuridão que a habitava. Por cima da escuridão que a habitava, havia muitas camadas de sonhos, todas coloridas. Os seus sonhos se sobrepunham em camadas, uma noite após a outra. E, ultimamente, ela era sonhada de escrever até a ponta dos dedos. Se ela não escrevesse, se ela não tocasse o sonho com a ponta dos dedos, ela poderia perder as suas impressões digitais? – ela se perguntava, enquanto observava pequenos confetes caindo no ar. De novo, os confetes. De novo, os pássaros. De novo, os vultos.
Mas, de repente, ao cochilar por alguns minutos, ela sonhou que gritava, e gritou tanto, que acordou gritando de verdade. Paulo se assustou, sentou-se sobre a cama em sobressalto, perguntando-lhe o que havia acontecido. Mas Maria Flor lhe explicou que fora apenas um pesadelo, apenas isso, e ele voltou a dormir, resmungando qualquer coisa, um tanto contrariado. Meu Deus, ela tentara se virar com tanto cuidado, para não acordá-lo, e depois gritava no meio do sonho, acordando-o assustado? A cada dia que passava, menos ele tinha paciência com as coisas que ela pensava e dizia. A cada dia que passava, mais ele se distanciava. E ela tinha gritado, e ela tinha gritado. Agora, tudo estava perdido, meu Deus.
Ah, era disso o que ela mais tinha medo na loucura: desse sonho acordado, desse sonho de olhos arregalados, de ficar sozinha em algum ponto equidistante, sem uma linguagem compartilhada, deixada num país estrangeiro que ninguém mais habitava e que ninguém mais sabia como chegar. Uma ilha cercada de nada para o qual não existissem barcos. Por isso, ela queria dar a Paulo um pensamento, uma memória indivisível, mas ela era toda uma pessoa adentro, uma pessoa que ele nunca visitaria em ser, mesmo se o corpo dele adentrasse o seu ventre naquele instante. Desde que ela se inaugurara como gente, havia aquela distância intransponível entre eles dois. Mas, depois que ela nascera sozinha, ela precisava de preencher o vão entre ela e Paulo, precisava de uma palavra para lhe dar. Mas, naquela noite, como não tinha qualquer palavra extraordinária, decidiu preencher o grande vão entre os dois levando entrelinhas nos braços.
Por isso, antes que ele voltasse a dormir, Maria Flor o abraçou e tentou lhe explicar que havia o mundo invisível que ela erigia sobre o nada e que podia cair quando uma criança assoprasse. Mas Paulo, caindo de sono, não entendeu o quão tudo era frágil, e apenas resmungou qualquer coisa que Maria Flor tampouco entendeu. Então, ela tentou lhe dizer, em sussurros quase inaudíveis, que os desconhecidos não eram estranhos, que mesmo quando eles atravessavam anônimos a grande avenida do bairro, eles tinham o mesmo segredo compartilhado: ninguém sabia a morte ou o próximo segundo. Disse, disse tudo isso a ele. Por isso, ela lhes escreveria cartas, cartas para lhes consolar da morte, cartas para lhes consolar da vida. Disse que tudo poderia ser pior, mas ela tinha aquela preocupação a menos: quando ela morresse, os pássaros continuariam cantando e as pessoas continuariam nascendo, ele não precisava de se preocupar.
Depois de dizer isso, ela respirou fundo, tentando organizar as palavras que a traduziam na esperança de que ele a compreendesse, mas depois se deu conta de que ela era tão incompreensível para ele, quanto ele era para ela também. Então, percebeu que já era tarde: ela já tinha nascido sozinha, e isso era intransponível, ninguém jamais pensaria os seus pensamentos com ela. De fato, Paulo não ouvia mais nada o que ela dizia, e Maria Flor pensou que, afinal, era melhor assim. Pelo menos, ele não a chamaria de louca como fizera naquela tarde. E deixou-o dormir profundamente. Acariciou os seus cabelos negros e lisos, que lhe caíam sobre a face. Era um homem tão bonito e de silêncio tão forte, não poderia traí-lo com Aureliano, com a mácula das flores do seu jardim.
Então, quando ele se virou para o outro lado, ela apagou o abajur novamente e tentou lutar com a escuridão dentro do quarto. Nos últimos dias, quando estava muito confusa, ela se perguntava as coisas bem ao meio da pergunta. O que caísse para um dos lados não seria bem a resposta que procurava. Por exemplo: de onde vinha a escuridão? – ela se perguntava, enquanto via a luz da lua entrar pela janela do quarto. A escuridão surgira primeiro do que a claridade? A escuridão, sem a luz, era o estado natural do Universo? Então, se ela o deixasse à própria sorte, o Universo seria escuro? Então, a escuridão existia por si mesma? Existia por dentro de si? Estava crescendo por dentro de si? Por isso, ela estava perdendo a sua lucidez? A escuridão era a única coisa que existia, antes de tudo? Então, em seu estado natural, ela, Maria Flor, existia, desde as primeiras células, à beira do escuro? Então, ela, Maria Flor, estava tentando voltar à sua escuridão natural? Eram muitas perguntas que ela se fazia porque o mundo era sempre uma porta fechada para o daqui a pouco – ela pensava, enquanto contava as poucas estrelas do céu, através do vidro da janela. De repente, quando olhou pela segunda vez, o céu ficou empoeirado de estrelas. Ela passou o dedo no ar e assoprou. Foram tantas estrelas caindo que ela mal conseguiu enxergar de tanta esperança.
Então, de repente, a escuridão do quarto escapou-lhe de dentro das mãos com a mesma velocidade com que um dos pássaros alados encontrara uma portinhola aberta. A única chance de tê-lo nas mãos seria quando ferido, mas ela não queria prendê-lo impunemente, apenas para compreender o que eram asas, apenas para escrever melhor. Por isso, levantou-se da cama e, silenciosamente, espantou os outros pássaros que ainda se amontoavam sobre o edredom, para que escapassem dos seus olhos e da sua loucura. E, como num sonho acordado, todos voaram pela janela aberta, em direção à lua. Outros, simplesmente, desapareceram, sem maiores explicações.
Cochilou por alguns minutos. Quando acordou, foi até o armário e tomou mais um pote de escuridão. Havia dezenas de potes dentro do armário, que ela tomava todas as noites, sabendo que até dentro de um velho pote de plástico existia o vazio guardado. Por isso, tomou a escuridão bem devagarinho para não se engasgar. Sempre fazia isso quando se sentia muito aflita. Depois, recolheu o vazio com as conchas das mãos e o derrubou com um punhado de sopro. O vazio se espalhou pelo quarto, derramando-se pelo chão, e Maria Flor não soube mais o que fazer com os pássaros, com a escuridão, com as estrelas, com o amor que sentia por Paulo, com as mensagens de Aureliano, com os seus pensamentos. Tudo era tão confuso, tão confuso, meu Deus! Sentia que estava enlouquecendo ou que o mundo estava se descortinando pela primeira vez. O mundo estava cheio de pássaros amontoados no quarto, de borboletas sobre Paulo, de vultos que apareciam nas portas, de vozes que não paravam de discutir entre si, de confetes que caíam no ar, de água que escorria pelo chão, de flores que nasciam nas paredes e cresciam de repente na palma de suas mãos, de códigos secretos, de mensagens subliminares, de conspiradores, de crianças que já nasciam velhas, de pétalas caindo por toda a cidade.
Mas Paulo continuava dormindo profundamente, como se nada daquilo existisse. Então, ela se levantou com todo o cuidado, foi até a cozinha, abriu a geladeira e ficou procurando uma saída por si mesma, mas ainda não sabia onde a saída ficava. Depois, lembrando-se de que havia muitas horas que não comia nada, obrigou-se a se sentar à mesa, mesmo sem fome diante da vida. Alimentou-se no escuro, e mastigou a noite em meio a um pedaço de pão. Então, teve a sensação de que a noite lhe quebrara um dos dentes sem piedade. De algum modo, ela pensou que tinha de suportar a noite porque a noite lhe ensinava a dividir o sol com o outro lado do mundo. Todos tinham de aprender a voltar para o escuro de onde vinham – ela continuava pensando, enquanto mastigava a noite, sem um pingo de fome. Mas, enquanto comia, olhava o relógio da parede mais uma vez. O relógio fazia muitas voltas, mas o tempo, não. E o que era o tempo? – ela se perguntava sem saber. Era como se ela fosse uma a cada instante, e que cada uma ficasse largada no tempo, à medida em que o tempo passasse. Por isso, enquanto ela vivia, largava os rastros de si por instantes. Apesar disso, o tempo não a deixava voltar ou reaver aquilo que ela tinha sido, mesmo que ela tivesse sido apenas ela mesma, e ninguém mais do que isso. Não era injusto? Viver somente para o que viria, nunca para o antes de? Será que o tempo só andava para frente? Será que, em direção ao futuro, ela só poderia andar de costas, olhando as pegadas que largava para trás? E se ela se virasse de frente, o passado continuaria sendo aquela cauda imensa que ela arrastava pelo caminho, enquanto andava cega em direção ao futuro? De qualquer modo, não conseguia enxergar à longa distância, só quando se aproximava o máximo possível do instante, quando pisava no instante, quando o instante era – ela continuava pensando, enquanto algumas vozes discutiam entre si, por dentro do seu pensamento.
Por isso, depois de mastigar a noite e de tomar a escuridão, pensando e pensando sem parar, Maria Flor levantou-se da mesa, foi até o armário e procurou uma câmera que fotografasse o iminente. Ela a levaria em sua pequena viagem, para que, assim, a memória revelasse de uma vez aquelas imagens, pendurando-as na linha do tempo: para secar. Então, ela descobriria os segredos ocultos do mundo. Mas, não, não encontrou câmera alguma. E se apavorou um pouco mais, como se tudo fosse fugir ao seu controle. Às vezes, antes de sair de casa, ela tirava uma foto do mundo para antever os imprevistos porque a sua câmera não, nunca enlouquecia.
Paulo não compreendia nada daquilo: os seus potes de escuridão, a sua câmera que fotografava o iminente, a sua boina para guardar a loucura, o seu relógio de reverter o tempo, os pássaros que se amontoavam sobre o lençol, os vultos, as vozes, o seu dispositivo de transmissão de pensamentos, os códigos secretos, os conspiradores, o mercado clandestino, o símbolo das cores, as mensagens nas placas dos automóveis, as entrelinhas nos programas de televisão e nas redes sociais. Para ele, tudo aquilo que ela tentava lhe explicar era simplesmente loucura. E, quando ele a chamava de louca, milhares de borboletas escapavam do abismo que se formava entre os dois. Ela via, ela podia ver o noivo coberto de borboletas, mas ele sempre permanecia impassível, como se tivesse nascido com elas pregadas ao seu corpo. O que mais a afligia é que ele não se impressionava com nada daquilo. Meu Deus, como ele conseguia manter a calma em meio ao turbilhão que se formava no fundo do mundo? Sinceramente, ela não sabia. E também não entendia como as borboletas, às vezes, simplesmente, desapareciam no ar.
Mas, todos os dias, ela percebia a semelhança entre os sucessivos dias que nasciam; e era como se os esperasse também no outro dia, e no outro e mais outro. Então, olhou para o calendário pendurado na parede. Todas as folhas, com os dias, desprendiam-se sozinhas, uma folha depois da outra, e o chão ficou forrado de dias que ela não vivera. Maria Flor olhava para as folhas do calendário que, esvoaçantes, caíam sem parar. Eram os dias do seu passado: trezentos e sessenta e cinco dias multiplicados por seus vinte e três anos de vida caíam sem parar, bem à sua frente, e ela não sabia como tirá-los dali antes que Paulo acordasse. O que ele pensaria daquela bagunça? Que, além de louca, ela também se tornara uma grande bagunceira? Já havia os pássaros, as borboletas, as vozes, os vultos, as flores que cresciam nas paredes ou na palma de suas mãos, agora as folhas do calendário espalhadas pelo chão? Não, não podia esperar qualquer originalidade no mundo, o amanhecer era um clichê e sempre seria.
Então, fechou os olhos com força e permaneceu alguns minutos com eles fechados. Quando ela os abriu, foi inevitável: ela estava viva de novo, e de novo, e de novo. E tinham sido tantos dias caindo, que ela quase previu a sua existência nos improvisos do amanhã. Agachou-se e pegou um dos dias do calendário entre as mãos. Era o dia 6 de abril, o dia do seu aniversário. Ah, não era impressionante como ela vivia sobre a terra, dormindo e acordando, fazendo coisas parecidas todos os dias? Quem combinara com ela que seria assim? Ninguém combinara nada, e apesar disso, ela fazia isso todos os dias. O mundo não era uma sucessão de acontecimentos aleatórios. Havia uma certa rotina que normalmente a acalmava – ela continuava pensando, enquanto tentava recolher os dias do chão. Mesmo assim, a vida era uma sucessão de dias maiores do que a força dos seus braços e, por isso, ela não tinha esperança de que o tempo não passasse. Oh, sim, ele passaria, sim.
Por isso, ela queria inventar um relógio ao contrário que, girando em sentido anti-horário, sempre voltasse do mundo dos sonhos, revertendo o tempo que passava. Já tinha comprado as suas minúsculas peças e estudado as suas engrenagens, só lhe faltava descobrir um meio de reverter o tempo. Paulo não entendia o que ela queria fazer com todas aquelas peças diminutas, mas Maria Flor sempre inventava alguma desculpa que o fazia olhar enviesado. Sentia que a paciência dele se esgotava a cada dia, ainda mais, quando passou a dizer que ela estava enlouquecendo. Dizia-lhe que ela deveria escolher, pois se ela não aceitasse ir a um psiquiatra, ele iria embora de casa. Então, Maria Flor andava de um lado ao outro, escondendo a cabeça entre as mãos, pensando, pensando, pensando, prensada contra o irei. Se ela fosse a um psiquiatra, deixaria lá o seu nome, o seu endereço, e os conspiradores a encontrariam facilmente. Até então, eles só conversavam em seus ouvidos, por meio de algum dispositivo secreto, mas nenhum deles sabia onde Maria Flor morava, e ela estava, de algum modo, protegida do vazio. Às vezes, quando ela andava pelas ruas e escutava vozes, ela até fechava os olhos com força, para que nenhum dos conspiradores descobrisse o seu endereço ou reconhecesse as ruas por onde ela passava. Mas se ela fosse ao psiquiatra, tudo estaria perdido. Ela cuidava muito para não lhes fornecer os seus dados pessoais, ela cuidava até mesmo para não se olhar muito no espelho, para que eles não fizessem o reconhecimento facial. Sentia que as vozes conversavam a partir de um rádio instalado na sua cabeça, em um sofisticado sistema de comunicação secreto. E podiam ver através dos seus olhos e escutar a partir dos seus ouvidos e sentir odores através das suas narinas. Era isso. Ela tinha certeza de que era isso. Há muitos anos, o seu pai ou alguma colega de quarto instalara um dispositivo secreto em seu ventre. Um dispositivo de comunicação oculta que se conectava com o seu cérebro. Um dispositivo capaz de ler todos os seus pensamentos. Só não via quem não queria ver. O seu pai fora cooptado pelo mercado editorial, era isso, estava claro, agora, era isso, era isso, meu Deus.
Mas, naquela noite, parada ali na cozinha com as peças do relógio entre as mãos, olhando para os dias do calendário esparramados pelo chão, Maria Flor não sabia o que fazer, e simplesmente afastou a franja dos olhos, atrasada para o serei. Sabia que tinha olhos na frente do rosto, mas não conseguia enxergar o amanhã, só o que já vivera algum dia – ela constatou, e se cansou de ser.
O problema é que ela não tinha memórias do futuro, nem saudade do que nunca vivera. Saudade era uma palavra encharcada de ontens, de chuvas abandonadas no quintal da velha casa. E, aos poucos, ela ia se deixando em tudo o que vivia, tinha muitas testemunhas mais jovens de si mesma, mas ao que nunca vivera, ela nunca chegava. Talvez, ela nunca chegasse. Talvez, os seus passos se desviassem do amanhã que ela tanto esperava, e por isso ela tinha medo. Há alguns meses, Maria Flor tinha medo de tudo.
Se o tempo era uma quarta dimensão, será que Paulo ainda a esperava em algum ontem? Será que, nesse ontem, ele ainda a chamava de poeta, como antes? Será que ele ainda estava lá em algum lugar? Ou será que ele já tinha ido embora até do seu passado, e tudo virara um grande sonho, uma grande alucinação, algo que ele dizia nunca ter acontecido? – ela se perguntava. De algum modo, ela achava que quem falava “nunca” já havia espiado os amanhãs, mas não vira coisa alguma. Vira que eles estavam vazios daquilo que ainda não. Por isso, um “nunca” era quase uma mentira, era um amanhã sem fundo. E ela só conseguia deixar as coisas para trás, ela nunca conseguia deixá-las para frente, ou no amanhã que estaria por vir. Por isso, estava sempre sem rumo. Mirava as pequenas alegrias, mas não tinha uma bússola para viver. Além disso, ela não podia trocar de amanhã com ninguém, nem pegá-lo emprestado para ver se ele caberia num hoje, se ela se afeiçoaria a uma outra de si que pudesse viver em seu lugar caso ela estivesse muito atrasada para os amanhãs que ela ainda não conhecia. Estava à espera de um ser que já não existia mais. Por isso, ela sabia que amaria Paulo para quando, mas isso talvez fosse tarde de menos – ela pensava, enquanto guardava as peças diminutas do relógio dentro de uma gaveta. Não sabia o que fazer com o amor de Paulo nem com as mensagens de Aureliano. No fundo, achava que ela não tinha como carregar tantos amanhãs dentro de si porque os amanhãs eram imprevisíveis. Era uma incoerência que eles tivessem o mesmo nome: segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo… e de novo, de novo, de novo. Não, os amanhãs eram imprevisíveis e tinham de ter nomes de nunca, pois um amanhã era sempre à primeira vez. Pensou que isso fosse um grande embolar do tempo, como os ponteiros de um relógio que se embolassem de tanto rodar e rodar ao redor das mesmas horas, num grande redemoinho do tempo. Um redemoinho que a levaria para não sei onde dos mundos: talvez, a morte, talvez. Por isso, ela entregaria aquele relógio para Aureliano para que ele terminasse de montar. Já para quem estava vivo, o amanhã nunca existia, o amanhã era sempre depois de hoje, depois de hoje, depois de hoje. Inalcançável – ela continuava pensando enquanto afastava os dias do calendário com os pés, ao caminhar aflita pela cozinha. Ah, meu Deus, o amanhã só acontecia no pensamento de quem o esperava. Por isso, havia tantos desencontros entre os vivos e os mortos, e havia tanta saudade pelos que foram levados até o amanhã de modo irreversível, sem volta, porque o amanhã não a deixaria voltar para o dia de hoje; o amanhã seria sempre além, além e definitivo – ela concluiu, dobrando um amanhã ao meio e o apertando entre as mãos. Com uma força bruta que lhe atingiu o peito, sentiu saudade da avó e do tio.
Então, quando acabou de recolher os dias do calendário e de pensar em todas aquelas coisas, Maria Flor percebeu que os seus dedos estavam machucados porque ninguém, de fato, podia segurar o tempo entre as mãos. Por isso, ela esperou até a meia-noite para tocar o amanhã com a ponta dos dedos, mas tampouco conseguiu. Quando o relógio da parede soou meia-noite, o amanhã logo se desfez para um hoje, e ela não conseguiu mais alcançá-lo a tempo. Tudo se desmanchava como as pétalas que caíam do teto.
Então, ela ficou pensando: será que ela queria Paulo só por ele estar dormindo, inofensivo da morte que era amar um outro ser? Da morte que era atravessar para o outro lado de si? Da morte que era atravessar para o outro lado do tempo? Se ela não se matasse com uma arma, a morte iria, aos poucos, encanecer as suas têmporas. O tempo também haveria de fazer o mesmo trabalho, só que mais devagar. E ela precisava de ter paciência para viver até o fim. Prometera isso para Paulo. E prometera a si mesma que deixaria o estilete dentro da gaveta, arrumaria a sua mochila e andaria por aí até chegar à rádio de Aureliano, escrevendo cartas aos desconhecidos. Sim, ela iria ao encontro de Aureliano para lhe entregar o relógio de reverter o tempo. Pela rádio, codificado como as nuvens do céu, ele havia marcado um encontro secreto. Ela não poderia faltar. Afinal, ele era a única pessoa que a compreendia, e que se comunicava com ela por meio dos códigos secretos, que a avisava dos perigos do mundo. Aureliano era um dos escolhidos. Bastava um segundo para desconfigurar os dispositivos de transmissão dos pensamentos. Então, viveria tão intensamente o momento presente a quase chegar atrasada ao momento seguinte. Era isso, era só isso, meu Deus. Que Paulo não a expulsasse dos amanhãs que sonharam juntos.
Então, Maria Flor olhou para as próprias mãos. Sobre elas, viu um outro pássaro pequenino que repousava, mas pensou que a vida era o que ele tinha vivido de imediato e o que ele tinha esperado enquanto nada acontecia. Ele era a soma de tudo isso. Por isso, ela não sabia mais o que fazer com aquele pássaro fugidio, com aquele pássaro de asa manca, com aquele pássaro que não previra o escuro. O que ela faria com ele? – ela se perguntava, enquanto via o pássaro piscando os olhinhos. De algum modo, mesmo com medo, ela tinha sobrevivido até aquele instante. Então, só precisava de que o momento presente se transformasse no instante seguinte. E agora, e agora, e agora, o que ela faria com aquele pássaro? Como voltaria para a cama com um pássaro entre as mãos? Andou de um lado ao outro pelo quarto com o pássaro entre os dedos, enquanto centenas de outros escapavam pela janela aberta. Normalmente, ela só precisava esperar alguns minutos, até que eles desaparecessem dos seus olhos. Por isso, ficou olhando o relógio da parede e pensando no pássaro, no amor, em Paulo, no tempo, no amanhã, na sua viagem, no encontro com Aureliano, nas cores dos livros da estante e nos códigos secretos do mundo. Difícil mesmo era ser atravessada por pássaros e não piscar, para que ninguém notasse o turbilhão da sua loucura. Se ela gritasse por pássaros que ninguém mais via, se respondesse às vozes que ninguém mais escutava, ela acabaria num hospital psiquiátrico, isso ela sabia bem.
Mas, o que mais a agoniava é que Paulo não compreendia nenhum dos códigos que ela tentava lhe explicar. Ele não entendia que tudo estava secretamente codificado. Mas ela sabia. Aureliano sabia. Poucas pessoas no mundo sabiam. Só as vozes é que sabiam bem. Tudo era muito claro. Só não via quem não queria ver, mas para não serem tidos como loucos, todos usavam mensagens subliminares. As placas dos veículos tinham códigos secretos que ela começava a ler e a desvendar. E os carros que passavam eram os informantes. As cores que os transeuntes usavam em suas roupas eram carregadas de significados. O vinho, da cor do sangue, era para sinalizar que a transmissão dos pensamentos estava ativa. O verde, da cor dos vegetais, era para informar que ela se alimentara apenas de frutas, e estava muito conectável. O amarelo era para dizer que ela estava sem dinheiro. O laranja, que estava sem tomar banho, sem pentear os cabelos, sem fazer as unhas, sem se arrumar. E que se fosse encontrada morta, dentro de casa, obviamente, seria um suicídio, e ninguém seria investigado. As frases que as pessoas usavam no rádio, na televisão, nas placas de propaganda ou na internet não eram feitas ao acaso, estavam abarrotadas de entrelinhas. Em tudo, havia uma mensagem secreta, e que ela, só agora, começava a desvendar e a traduzir.
Talvez, as pessoas que a perseguiam e se conectavam ao seu corpo fossem os agentes secretos do mercado clandestino. Sempre escrevera, desde criança. Sempre tivera muitas ideias. Aprendera a ler sozinha, com Paulo, aos quatro anos de idade. Era uma fonte inesgotável de novas ideias. Poderia ter se tornado uma grande escritora, mas o seu pai fora cooptado pelos conspiradores e a vendera ao mercado clandestino. Para ascender à alta literatura, era preciso ler a mente dos escravos. Ela não tinha um escravo. Ela era um dos próprios escravos. E os escravos estavam fadados à escravidão, nunca à alta literatura. Além disso, ela ainda escrevia de um modo muito cru – era o que as vozes diziam. Então, o que os conspiradores queriam era aproveitar as suas ideias e desenvolvê-la a partir de uma forma mais refinada para que se transformasse num clássico. Uma forma que ela, Maria Flor, ainda não dominava bem – era o que as vozes diziam. Clarice Lispector teve os seus escravos. Lygia Fagundes Telles teve os seus escravos. João Guimarães Rosa teve os seus escravos. Todos, todos os grandes autores leram os pensamentos dos seus escravos. Talvez, o Brasil estivesse tomado pelo mercado clandestino e agentes secretos tivessem desenvolvido aquela estranha comunicação secreta como uma forma de resistência. Mas ninguém podia dizer isso claramente. Havia uma rebelião insurgente e secreta para libertar os escravos e Aureliano era um dos escolhidos, era um dos rebeldes. Bem, e o que mais seria, então? Estava claro que era isso, aquela era a explicação mais razoável para o fato de aquelas vozes se conectarem ao seu corpo e lerem os seus pensamentos. Só não via quem não queria ver. E isso era tudo.
Enquanto isso, alguém a escrevia. Alguém lia os seus pensamentos e a escrevia. Ela era a personagem de alguém. Ah, meu Deus, era óbvio, ela tinha certeza, ela era a personagem de alguém, mas Paulo não acreditava, Paulo não queria ver, dizia que nada daquilo existia, que ela estava apenas enlouquecendo, apenas isso, enlouquecendo, meu amor, ah, meu Deus, enlouquecendo. Maria Flor afligia-se, dizendo que, por viver ao seu lado, ele também era um personagem. Mas Paulo ria. Então, ele passava as mãos nos cabelos dela, encostando a testa na sua, pedindo que ela procurasse um psiquiatra, pelo amor de Deus. Ele acreditava piamente na sua existência. Ele acreditava sim, apenas porque tinha um trabalho que amava e uma infância por trás de si. Maria Flor dizia que todos os personagens também tinham. Mas ele lhe mostrava os livros da estante, os livros da estante da estante, e dizia que os personagens eram eles, não ele, ele não. Maria Flor se desesperava.
Mas, aos poucos, quanto mais ela pensava nos códigos secretos, mais ela desvendava o funcionamento do mercado clandestino. Algumas pessoas já tinham entendido os sutis significados, mas ninguém dizia isso claramente, com medo das perseguições e das retaliações que poderiam existir no mundo. Essas pessoas só podiam conversar por meio de códigos secretos. Então, com todo o cuidado para não colocar farpas no meio das entrelinhas, Aureliano tentava guiá-la para libertá-la da escravidão. Ele entendia todos os códigos, meu Deus. Desde o primeiro programa no rádio, em que ela ouvira a sua voz, ela soube que ele entendia. Não, não era só em sua cabeça que ele falava, era na rádio também, para todo mundo ouvir, mas só Maria Flor podia compreender as mensagens que, com todo cuidado, ele escondia nas entrelinhas. Só ela e Aureliano conversavam nas coisas não-ditas. A qualquer momento, ele podia empurrar as suas entrelinhas para o nunca e, mesmo assim, elas teriam persistido, como se não encontrassem um outro lugar para se desmancharem. A qualquer momento, ele podia se safar de tudo o que nunca fora dito claramente. Ainda assim, ele teria inventado uma linguagem estrangeira e invisível, partilhada apenas entre eles dois. Ele sabia e ela sabia também. Quem não soubesse o que eles conversavam em palavras e silêncios, não entenderia o que as entrelinhas queriam dizer.
Mas ela demorou muito tempo para aprender aquela linguagem estrangeira porque aquelas metáforas também pertenciam ao invisível, e tudo o que era do invisível lhe dava medo da loucura. Por exemplo, quando Aureliano falava sobre a voltagem dos aparelhos eletrônicos é porque ele iria voltar. Quando ele falava jamais é porque a amava ainda mais. Quando ele dizia qualquer coisa sobre a Elza era, na verdade, sobre a viagem que ela fizera para os Estados Unidos. Quando ele dizia algo sobre a escala pentatônica era para fazer um elogio sobre as palavras escritas por Maria Flor, para lhe dizer que a sua caneta estava tônica. Nada do que ele realmente dizia era dito em palavras diretas. Para alcançar uma palavra, ele subia por cima de outras, ele as camuflava como um soldado na mata, como se nunca pudesse enunciar o verdadeiro sentido das coisas, mas, ao contrário, tivesse de rodeá-lo, deixá-lo sempre no impronunciável. Era como se ele usasse uma palavra que tivesse uma mola, e que saltasse sobre uma outra até chegar ao que não estava dito em lugar algum, a um degrau mais alto no entendimento, ao seu verdadeiro significado. Esse lugar mais alto estava no pensamento de quem escutava, ou num trampolim, nunca nas próprias palavras. Nada era dito claramente. Era como uma brisa que se esbarrava no aberto, sem nunca se misturar ao vazio. Então, era como se ela tivesse aprendido a linguagem do invisível e soubesse diferenciar as brisas dos tufões. Às vezes, Aureliano pensava muito delicadamente, mas, em outras vezes, ele pensava com a urgência de um vício.
Havia ocasiões em que ele provocava uma grande perda de sinal, e então Maria Flor sabia que ele estava, mais uma vez, pedindo-lhe perdão. Perdão por não lhe dizer as coisas claramente. Perdão por não procurá-la nas redes sociais. Perdão por ter lido os seus pensamentos e visto através dos seus olhos. Perdão por ter lhe dito palavras em seu ouvido sem a sua autorização. Perdão por ter lhe feito carícias à distância, no escuro da noite. Perdão por ter de usar aqueles subterfúgios que, muitas vezes, eram tão invasivos, meu Deus. Era a única forma possível de comunicação. E ele precisava de lhe avisar de todos os perigos. Não havia outro jeito, ele não podia se dirigir a ela claramente sem que ele também fosse perseguido pelos mandantes do mercado clandestino. De qualquer modo, ela jamais deveria confundir o aberto com o vento ao redor, mas saber, com os olhos treinados para o vazio, diferenciar um do outro. Então, ela treinava os seus olhos para enxergar o nada que ele lhe oferecia em seus silêncios, quando ele tentava buscá-la de lugar nenhum, onde ela foi parar.
Mas o que Maria Flor demorou ainda mais para entender foi a maneira como Aureliano lhe deixava mensagens em todos os livros que ela lia. E, para isso, ele se apropriou do dicionário, da crueza primeira de cada palavra. Não sabia como ele chegara à biblioteca do bairro, mas, de algum modo, ele trocara a maioria dos livros da estante, deixara, em cada um deles, mensagens secretas para ela. Ela nunca mais conseguia deixar de ler, isso era mesmo algo irreversível. Sempre que os seus olhos encontravam alguma palavra em português, ela decodificava o seu significado. Não havia mais como escapar da leitura. Ela nunca mais veria as letras como risquinhos e bolinhas: a sua mente sempre haveria de captar a tal palavra no ar – ela continuava pensando. E, antes mesmo que o autor do livro tivesse escrito qualquer coisa, qualquer coisa que fosse, Aureliano já havia tomado para si o sentido de todas as palavras, isoladamente. E, depois, era impossível não associá-las a ele. Maria Flor nunca tinha visto alguém escrever assim, arrancando as palavras com os dedos, arrancando-as de todo mundo, arrancando-as de toda parte, a nudez do sentido à sua frente. Então, quando ela olhava para as próprias mãos, pousadas sobre os seus joelhos, ela via terra e mato entre os seus dedos, terra e mato que ele havia enviado para os seus olhos. Ela via. Ela escutava. Ela sentia as carícias dele em sua pele. Isso era a prova irrefutável de que ele escrevia com força, de que havia força nos seus escritos, de que os seus escritos tinham a força de todo um silêncio. Dia após dia, ela lia os livros que ele deixara na biblioteca ou sintonizava o rádio às oito e meia da manhã, e escutava o silêncio que Aureliano compartilhava com ela, nas coisas não-ditas, pois ele era silencioso como uma fotografia. Não, não era ele que usava os seus sentidos para se comunicar com ela. Era ela que estava usando Aureliano para pensar para trás e compreender os segredos do mundo. Era ela que estava usando Aureliano para escutar para fora, e não apenas as vozes da sua cabeça. Por isso, ele lhe oferecia músicas para os seus ouvidos. Músicas que a curavam de um machucado etéreo. Um machucado que não se fechava nunca porque não havia uma pele onde pingar unguento. Ela também tinha uma chaga no que não existia, pois até o invisível era capaz de feri-la, mas as músicas e as palavras de Aureliano a assentavam no fundo da vida, e depois a arrastavam à força para sua infância. Havia, no mundo, um lugar pequenino para ela também, e por isso ela não podia faltar ao encontro com Aureliano, pois até uma formiga tinha lugar nessa existência – ela continuava pensando. Aureliano se aproximava dela num lugar anterior à linguagem, numa linguagem em que as palavras nada queriam dizer, senão uns murmúrios irreconhecíveis. Ele nunca a chamava de louca, ele entendia os seus pensamentos, ele até os lia de vez em quando e os respondia através dos livros, através dos programas do rádio, através das músicas que ele selecionava, através das suas postagens nas redes sociais. Ele até enxergava através dos seus olhos, ele até a visitava em seu corpo, quando ela deixava a janela aberta, ele até falava em seus ouvidos, e lhe oferecia músicas na rádio, mesmo que, por proteção, nunca dissesse o seu nome. Mas Maria Flor sabia que todas aquelas músicas eram mesmo para ela. Ele era um dos escolhidos e, por isso, ele sabia manejar o invisível e o dispositivo que ela trazia acoplado ao seu corpo. Mesmo assim, ela tinha medo apenas da distância que se abria em seus pés como uma armadilha. Tinha medo de cair para o sozinho, e ser capturada pela loucura, como num alçapão. De não saber o que fazer do nada, que era enfim o tudo que ela tinha. Mas enquanto a sua loucura não se instalava por completo, ela escrevia para Aureliano como quem abraçava, como quem abraçava o próprio instinto de guerra, como quem abraçava a defesa de todas as fronteiras, como quem abraçava a distância, o ímpeto e o belo. Depois, quando o programa de rádio acabava, subitamente, ela também se afastava e desligava o rádio para não desfazer-se. Eram os seus escudos, que ela tanto lustrava para depois vê-los, na sua imagem refletida no espelho, o seu semblante ali dentro. Sim, existia aquilo de se sentar em frente ao rádio, com o caderno na mão e liquefazer os seus labirintos, desaguando a solidão em palavras. Palavras que ela ia tecendo em linhas até escapar do Minotauro.
Depois, ela se levantava, pois tinha um lugar escondido no quintal onde ela cultivava algumas begônias em segredo para Aureliano. Mas as begônias só nasciam quando ela se distraía, nunca quando as esperava. Nem adiantava ela esperar pela primavera, em seu estado de latência, pois, entre eles dois, as flores eram tão repentinas quanto o seu espanto por estarem vivos, por entenderem as perseguições e as retaliações do mercado clandestino, por se comunicarem através do dispositivo secreto, acoplado ao seu corpo. Então, ela olhava as suas begônias para dentro, ela as olhava com força, guardando aquela fotografia em seus olhos, para mostrá-la para Aureliano quando ele lesse os seus pensamentos. Todas as coisas mais belas do mundo ela as olhava com força para guardá-las por dentro de si. E depois, deixava que Aureliano as visse, uma por uma, através do seu pensamento. E isso, e isso era amor – ela continuava pensando. Salvar a flor arrancada com toda a pureza do seu coração pecador.
Se, ao menos, ela conseguisse explicar para Paulo tudo o que ia dentro da sua cabeça, talvez, ele a encontrasse em algum lugar. Talvez, ele soubesse onde buscá-la. Ela não estava muito longe dali. Era só uma questão de achar o caminho de volta, onde uma razão se perdera da outra que se perdera da outra que se perdera de si. Mas que ele não esperasse grandes acontecimentos ao seu dentro, pois os seus dias estavam todos misturados, e viver já lhe era quase intransponível. “Algumas coisas eu deixei para trás, e elas voltaram para me esquecer.” – ela disse em voz baixa.
Então, quando o vento balançou a janela, Maria Flor sentiu as carícias de Aureliano e fechou os olhos com força. Não sabia como ele conseguia fazer isso, mas tinha certeza de que estavam conectados de alguma forma. Bastava pensar nele para que ele se conectasse ao seu corpo e a acariciasse. Do outro lado da cidade, ele ouvia o seu chamado, provavelmente, e se conectava ao seu corpo, era assim. Era impossível para ela barrar os seus pensamentos, eles corriam como água, eram involuntários. Não sabia como evitar. Então, sentia como se dedos muito leves subissem suas pernas até o meio das coxas. Por isso, pensou que a ciência não revelava tudo o que sabia. Há muito tempo, clandestinamente, os cientistas estudavam a comunicação entre os pensamentos e já estavam muito adiantados. Os escravos que serviam à transmissão dos pensamentos eram cobaias desses cientistas – ela continuava cogitando. Quantas coisas a ciência não estudara clandestinamente antes de revelar ao mundo? A transmissão dos pensamentos era uma dessas coisas secretas – ela tinha certeza. E, em seus ouvidos, Aureliano marcava um encontro secreto.
De qualquer modo, não sabia explicar o modo como ele modificava a rota dos ventos e navegava esse mundo, apesar de bravo. Mas ela, que não se desgrudava da cama, sentia o vento desenhando partidas em seu vestido. E ele esvoaçava tanto, meu Deus. Era o vestido que a sua avó costurou quando podia se sentar na máquina de costura e abraçá-la de repente: porque o seu abraço era só um ponto que a vida dava para costurar o amor. Era o mesmo vestido que Aureliano, em sussurros quase inaudíveis, pedia para que ela soltasse o laço e deixasse cair aos seus pés, na hora do banho, ou quando, vagarosamente, ela abria um botão depois do outro: desabrochando uma flor. Ah, mas as mãos de Aureliano, quase imperceptíveis em sua cintura, amparavam-na do abismo que era existir. Então, ela sentia o tremor do seu corpo, o fecho abrindo fendas num terremoto. As mãos dele eram como fios de água sugados pela fenda na terra, como se escondessem segredos à prova de sismo. Por isso, ela pensava, também em sussurros: “Pobre homem, não se assuste. Perdoe-me por essas pétalas escondidas no bojo dos meus seios; eu só queria que o seu mundo fosse tenro e fosse calmo”. Então, Aureliano via todas as pétalas através dos seus olhos, e ela sentia o seu colo arder. Depois, quando todas as pétalas caíam no chão, ela fechava os seus olhos, afundava o corpo no dele o mais que podia, como se assim pudesse aprisionar um instante, como se assim ela pudesse aprisionar o amor. E ele, querendo as respostas que a vida não entregava, e que só uma mulher era capaz de abrigar dentro de si, acariciava os quadris de Maria Flor na ânsia de escorregar para dentro deles e ali ficar. Mas só uma fêmea era capaz de dividir-se assim ao meio: a metade de baixo a sobrepor-se forte, desfalecendo as resistências do macho, e a de cima a ampará-lo doce, beijando e acarinhando os medos de um filhote. Por isso, o amor era tudo o que nascia quando o medo se retirava, mas ela tinha um medo tão pregado ao seu corpo que só um abraço, um abraço de verdade, poderia ampará-la do abismo, ou pará-la da dor. E só porque um dia eles nasceram do escuro, o amor os inaugurava à primeira incompreensão do mundo. Amar era tão largo que era para dois. Por isso, antes de adormecer, Maria Flor segurou as mãos de Aureliano entre as suas, com langor, até sentir os seus dedos se abrindo dormentes, oferecendo a última força desperta. Foi só então que ela fechou os seus olhos adormecidos, mesmo que, então, um pouco aflita, não repartisse com ele a escuridão. E isso, e isso também era amor – ela continuou pensando com os olhos fechados, antes de adormecer completamente.
Mas, no dia seguinte, quando Paulo acordou e beijou-lhe a testa, Maria Flor tropeçou na sua própria sombra e se encharcou de escuridão, sentindo-se culpada de todas as flores da primavera, de todas as gotas de chuva, de todos os raios de sol. Todas as noites, ela traía o seu noivo na mesma cama em que ele dormia, enquanto ele dormia, e isso não era pouco, não era, não. Todas as noites, invisivelmente, ela amava Aureliano e se esparramava toda para viver. Não, não era certo, não, não era – ela pensava um pouco aflita, passando a mão sobre o rosto e os cabelos despenteados. Mas não sabia o que fazer para que as carícias de Aureliano não lhe chegassem no meio da noite. Certa noite, até fechou a janela de vidro, apesar do calor que fazia, mas, logo em seguida, deixou uma fresta mínima aberta antes de se deitar. E ele veio. A verdade é que ela não queria que ele deixasse de se aproximar. E era isso o que a deixava ainda mais culpada. O invisível era mesmo irresistível. Mas Paulo era um homem tão bom. Não merecia aquilo, não merecia, não.
De qualquer modo, ainda estava com tanto sono, precisava de dormir mais um pouco, meia hora, uma hora, e sonhar com a sua boina feita de nuvens. Sonhar era dar vazão à sua loucura, e ainda assim, poder acordar no dia seguinte sem estar completamente louca, sem estar essencialmente ferida. Por isso, deu corda no despertador que a acordaria na razão seguinte. Quando isso acontecesse, ela conseguiria tudo: compreender o funcionamento do mundo, escrever as cartas para os desconhecidos, ir até o encontro secreto de Aureliano, entregar-lhe o relógio de reverter o tempo e lhe dizer que não poderia mais levar aquilo adiante. Depois, poderia deixar as cartas por aí: no metrô, no cinema, nos sebos e livrarias, nos museus e galerias de arte, nos bancos da praça, como um pedido de desculpas a todos os Paulos que existiam no mundo. E pensar que muitas cartas, talvez, pudessem sair voando com o vento ou parar no lixo antes de serem encontradas. Ou mais: que nunca seriam encontradas, que aguardariam dentro de um livro, de um caderno, que só seriam encontradas depois que ela morresse. E pensar em outras que seriam lidas e guardadas com deferência. Quem sabe, até respondidas. Só Deus sabia o que poderia lhe acontecer. E pensar que, talvez, ela pudesse transformar o dia de alguém, quiçá para melhor, deixando o mundo, ao menos, um pouco mais íntimo. Era isso. Havia pessoas reais no mundo, sofrendo dores pungentes. Se o mundo lhe parecia tão frio e desconfortável, a ponto de querer se matar, a ponto de não conseguir mais dormir, quem sabe, ela poderia lhe escrever algumas cartas e deixá-lo, ao menos, um pouco mais íntimo? Afinal, se a hostilidade do mundo despertasse a sua, quem seria o primeiro a sorrir? – ela se perguntava enquanto fechava os olhos.
Após alguns minutos, concluiu que não conseguiria mais cochilar: o sono só chegaria quando a noite tentasse pendurar-se em suas pálpebras, amarrando estrelas – uma a uma – em cada cílio. E já era dia. Era preciso coar o café para Paulo. Era preciso esquentar o pão com manteiga na chapa para Paulo. Era preciso olhar para ele como se nada tivesse acontecido. Tanto porque, se ela lhe contasse a verdade, ele a chamaria de louca, de sua louquinha. Mas ela estava com tanto sono de pensar e de pensar a noite inteira, que se virou para o outro lado. Ainda precisava de pensar em tudo o que estava à beira do dormir porque ela era sonâmbula e, no sonho, ela poderia se aventurar de morte. “Ah, tudo podemos esperar daqueles que sonham em pé, daqueles que têm a força no sonho para se levantar de suas camas e andar pela casa” – ela respondeu para as vozes, bem baixinho, antes de suspirar. De algum modo, ela sabia que tinha um sonho muito grosseiro, que tinha um sonho muito corroído. O seu sonho poderia comandar os seus pés, as suas mãos e até a sua voz – ela se lembrou da última vez em que acordou falando ao telefone. Então, na ocasião, gritou de susto e desligou o telefone às pressas, sem saber quais segredos havia revelado a um estranho. Na noite em que fizera isso, ela acabou acordando Paulo e ele se aborreceu, perguntando-lhe para quem ela estava ligando naquela hora da noite. E foi difícil de lhe explicar. Por isso, ela pensou que a realidade temia o seu sonho sonâmbulo porque ele era capaz de ultrapassá-la num grito. As pessoas poderiam jogar os sonhos em cima dos outros, e os outros poderiam se machucar de absurdos, eles poderiam até enlouquecer. Era preciso tomar muito cuidado quando andasse pela rua. Talvez, fora isso o que lhe acontecera naquela noite – ela continuava pensando, quase adormecendo.
Um dia, o seu pai jogou um sonho por cima dela, um sonho que não era seu, um sonho emprestado de alguma esperança, e ele se transbordou no clarão do dia, ficou respingando da sua infância, corrompido. Por isso, ela sentia aqueles cheiros que os outros não podiam sentir, e via aquelas flores que desapareciam da parede, e via aqueles vultos e aqueles pássaros, e escutava aquelas vozes que ninguém mais escutava, e tinha medo de que os outros estivessem loucos por cima dela, passando a mão em seu corpo tão frágil.
Quando o seu pai fizera isso, instalara um dispositivo secreto em seu ventre. A sua mãe não acreditara, dissera que era mentira, mas só não via quem não queria ver. Era triste demais saber que o seu pai se deixara cooptar pelo mercado clandestino, que ele aceitara prendê-la para sempre, apesar do talento que ela sempre mostrara para, um dia, tornar-se escritora. Depois que ele fizera isso, nunca mais ela conseguiria tornar-se conhecida, pois tinha se tornado um dos escravos do pensamento. E nenhum dos escravos conseguia ascender à literatura. Nunca teria uma ideia que não fosse cooptada pelas vozes. Nunca teria uma ideia para chamar de sua. As vozes leriam o seu pensamento antes que ela pudesse publicar o seu livro. As vozes leriam o que ela escreveria enquanto ela estivesse escrevendo, e seria tarde demais. As vozes enxergariam através dos seus olhos e escutariam por meio dos seus ouvidos. Era tarde demais, era tarde demais. Depois, o seu pai aparecera com aquele carro novo. Depois de vender a sua filha para o mercado clandestino, aparecera com aquele carro laranja berrante. Ah, por que seu pai fizera isso? Por quê? Agora, as vozes podiam se conectar ao seu corpo e, já adulta, ela sentia carícias invisíveis, mesmo quando ninguém a tocava diretamente e, já adulta, presenciava as vozes lendo e repetindo os seus pensamentos. Estava presa para sempre, meu Deus. Escutou o pai chamá-la de louca, dizer que havia trabalhado muito para comprar aquele carro laranja, coisa que ela não fazia muito bem, e se cansou de ser.
Estava certa de que aquela era uma forma de comunicação secreta, como se alguém pudesse cutucá-la à distância, acariciá-la à distância – ela continuava pensando, enquanto olhava os pequenos furinhos na manta que cobria a sua cabeça, como na infância. Não sabia como as vozes conseguiam fazer isso. Mas elas diziam “braço” em seus ouvidos e acariciavam seu braço. Diziam “pé” e cutucavam o seu pé. Era só pensar em uma parte do corpo que sentia uma pontada no exato local. Estava presa, o seu pai a prendera para sempre na grande rede do mundo – ela continuava pensando. Então, Maria Flor sentiu raiva dele, por ele ter feito isso consigo próprio. Errar é que era demasiado, e errar assim, contra o indefeso e a inocência, contra as flores que ela lhe desenhava nos cadernos, contra as flores que ela lhe pousava nas mãos é que era insuportável. As mãos do seu pai, para sempre, feridas do seu corpo tão frágil. As mãos do seu pai, para sempre, feridas de uma criança.
Foi um dia – ela se lembrou – quando ainda era pequena, a porta se abriu devagarinho para o escondido das coisas, avisando, quase em sussurro, que a escuridão poderia entrar e se misturar à noite lá dentro. Então, Maria Flor prestou bem atenção, agarrando-se ao seu boneco, pois a porta parou de separar as noites de dentro e de fora, e ela ainda não sabia como era a noite por dentro do peito. Ela só queria saber quem é que estava ali, e entrava antes da revoada dos pássaros.
Ela já sabia o que era o antes, e já sabia o que era o depois; e, para lembrar a si mesma, ela olhava as descosturinhas da manta. O antes era onde ainda passava o vento, e o depois era onde um pontinho da manta se soltava do outro, que se soltava do outro, rasgando a manta, assim. O antes era o muito silêncio e o depois era o shhhhh. Mas Maria Flor não via muito bem quando o antes era da mesma cor dos seus olhos. Além disso, quem adentrou aquela porta conseguiu passar um silêncio bem no meio da noite – ela pensava, ainda criança. Por esse motivo, ela tinha medo: ela não conhecia ninguém que soubesse abrir o escuro.
Então, com os seus olhos apertados, ela enxergou por dentro apenas a escuridão. Ela encheu os pulmões com o escuro da noite, mas alguma fresta de luz também foi junto. Por isso, naquela noite, ela viu: era o seu pai. Era mesmo o seu pai. Meu Deus, era o seu pai. E se o seu pai descosturasse também as estrelas, levaria a noite com ele, e levaria o depois? E se ele levasse o depois, ela nunca mais entenderia os passarinhos de manhã? Ela poderia morrer? Mas, assim, ela não entendia e, então, perguntou a ele, sussurrando: “Pai, por que o senhor está fazendo isso? Por que o senhor está com a mão aí?”
O silêncio respondeu como sabia, mas Maria Flor não entendia que, às vezes, o vento vinha, passava pelas descosturas da calça, e ia embora, assim. Mas quando o vento abria a porta e entrava nervoso, era porque, mais ainda, ele queria sair. Já o vento que não queria ser vento, virava um soprinho guardado nas vozes das crianças que ela escutava, e era só isso mesmo, catavento, fim – ela continuava pensando. Quer dizer, depois, o vento ia, levava umas folhas da mesa, mas Maria Flor não entendia nada, pois o vento, quando escrito, ficava nas folhas em branco. E era só isso, era só isso, mesmo, meu amor.
Então, quando o seu pai fechou a porta atrás de si, ela se levantou carregando o seu boneco nos braços, foi até a escrivaninha, pegou uma folha da mesa, dobrou assim e assim, e tirou de lá de dentro um passarinho, e havia tanto vento escrito que o pássaro ficou para sempre voando. Depois, toda vez que ela passava pela mesa, ela assoprava o passarinho porque ela tinha um soprinho guardado. Era um soprinho de nunca contar a ninguém o que acontecia por dentro do seu quarto com o seu pai, e era só isso mesmo, gaiolinha, fim – ela continuava pensando. Bastava assoprar, assoprar e assoprar o passarinho, sem contar para ninguém. Desde então, os pássaros começaram a entrar pela janela do seu quarto e a se amontoar sobre o edredom, sobre a cabeceira da cama, sobre o armário, sobre a escrivaninha, sobre a sua vida inteira. Os pássaros que só ela podia ver. Os pássaros que carregavam o vento no nome. Os pássaros que rasgavam um dos ventos ao meio. Os pássaros que não queriam se mostrar para Paulo e para mais ninguém.
Muitos anos depois, contudo, depois daquele breve cochilo, de sonhar com Aureliano, com a sua pequena viagem e com as cartas que ela escreveria aos desconhecidos, Maria Flor acordou em sobressalto. Viu uma fresta de luz brincando na cama, o sol deitando a sombra em suas pálpebras. E era tão bonito e simples ver a luz do sol pintando os móveis de colorido que ela pressentiu o fim do seu noivado: nenhum amor poderia florescer dentro de uma casa, sem contemplar por instantes a luz de uma tarde. Então, guardou aquela fotografia por dentro dos seus olhos para quando ela não visse mais beleza no mundo e se esquecesse de viver, ou para quando Aureliano lesse os seus pensamentos, e entendesse por que ela queria salvar o seu noivado. Desde que era criança, Paulo era o seu melhor amigo, era o seu vizinho, era o seu espanto. Era uma beleza que ela sempre guardara para depois.
Então, sentou-se na beirada da cama, para não machucar os pássaros que ainda se amontoavam ao seu redor. Paulo estava tomando banho, e ela, de algum modo, precisava de conversar com alguém, pois os pássaros que se amontoavam ao seu lado, naquele quarto vazio, já não tinham mais paciência para escutá-la, e nem ela tinha coragem de incomodá-los em suas inexistências. Eram eles que mais temiam as coisas que existiam no mundo.
Então, quando Paulo saiu do banho, passou os braços ao redor da sua cintura e a olhou bem dentro dos olhos. Os cílios de Maria Flor agarraram-se às pálpebras quando ela tentou fechar os olhos, mas Paulo os assoprou e todos os seus cílios voaram. De novo nasceram e de novo voaram. “Não faça mais isso!” – ela lhe pediu. – “Quem vai cortar a lágrima em fatias no dia em que você for embora?”
Mas Paulo não entendeu a pergunta, não entendeu por que ela esfregava tanto os olhos e fechou a porta atrás de si, dizendo que prepararia o café. Maria Flor tinha muito a lhe dizer, mas a cada vez que tentava lhe mostrar as coisas que via ou explicar as coisas que rondavam os seus pensamentos, ele se impacientava ainda mais, chamando-a às vezes de “minha louquinha”. Por isso, ela resolveu que ficaria em silêncio, guardando todos aqueles segredos e descobertas para si mesma. Então, sentiu-se esvaziada de sentidos como se os seus pensamentos não tivessem mais palavras que lhe coubessem, como se ela se agarrasse a eles como às asas de um pássaro, como alguém que entra no mar e não distingue mais o vazio ao redor, só por ele, o vazio, estar molhado, como alguém que entra no mar que nunca mais se aquieta, que nunca mais para de rebentar, como o próprio coração do mundo. E isso era tudo – ela continuava pensando. E isso era tudo.
Tomaram o café em silêncio. Às vezes, os olhos de Paulo cruzavam com os seus, como os passarinhos que pousavam no fio, antes de voar. Mas ele não dizia nada, e sorria um meio sorriso, ao limpar a boca no guardanapo. Ela sorria de volta, um tanto sem jeito, sem saber se ele escutara as coisas que Aureliano lhe falava ao pé do ouvido. Em pensamento, ela pedia que ele ficasse em silêncio, mas Aureliano aparecia quando sempre, quando nunca.
Depois, quando Paulo saiu pelo portão, sumindo pela estrada afora, Maria Flor sentiu o seu mundo desmoronar. Abriu a janela da sala e enxergou uma placa de trânsito na rua, avisando os transeuntes: “Favor reduzir a estatura à medida em que se aproximar do horizonte”. Então, ao olhar de novo para o meio da rua, a placa não estava mais lá. Olhou e olhou de novo, mas nada. A placa já tinha sumido.
Em seguida, Maria Flor olhou para o final da rua e percebeu que, quanto mais Paulo se afastava, mais ele diminuía de tamanho. Dava até para ser apanhado entre os dedos e guardado no bolsinho do seu vestido. Ah, quem dera, ela pudesse guardá-lo ali, a salvo dos conspiradores, a salvo do mundo, a salvo do seu desejo por Aureliano, a salvo de si mesma. Mas, a cada passo que ele dava, sumia ainda mais. Talvez, ele sumisse para sempre, e Maria Flor teve medo das portas que se abriam para os níveis do mundo.
Então, Maria Flor olhou para cima e reparou: no meio dos prédios altos, frios e cinzentos, todos os postes de luz – com seus fios – amanheciam de mãos dadas. Por isso, naquele instante, ela adentrou um mundo onde não cabia mais ninguém. Pensou em preparar mais uma xícara de chá e cortar mais uma fatia de bolo, a fim de não enlouquecer sozinha, a fim de dar a mão a alguém, mas tinha a cadeira vazia ao seu lado. Ninguém aparecia para enlouquecer junto com ela. Se Paulo aparecesse, se Paulo voltasse do seu trabalho naquele minuto, eles poderiam se sentar no chão, encostados à parede, com as mãos dadas, e ver mil pássaros entrando pela janela do quarto, e escutar as mesmas vozes, e sentir as mesmas carícias. Seriam testemunhas um do outro – Maria Flor pensava enquanto cortava o bolo em pedaços e o guardava num pote de plástico.
Se eles fossem testemunhas um do outro, eles inaugurariam um novo mundo, um mundo legitimado, e nenhum dos dois estaria louco. Não, ela não deixaria que o mundo de Paulo fosse outro: ela obrigaria o sol a nascer, as crianças a brincarem e os pássaros a alçarem voo. Ela cuidaria pessoalmente para que as estrelas voltassem ao céu. Dos absurdos do mundo, ela faria o seu espanto poético, como ver as flores nascendo da terra sem qualquer explosão. Então, quando as guerras acontecessem no mundo, em meio aos escombros, as flores continuariam nascendo. E, assim, quando ela olhasse para as palmas das próprias mãos, veria as flores brotando, como sempre, mas diria: “Tome as flores da minha loucura, Paulo, tome essas palavras, isso é tudo o que lhe dou.” E ele não poderia mais chamá-la de louca, apenas de poeta, como antes. Depois, ela estenderia as mãos e lhe mostraria o nada, até que ele, simplesmente, fechasse as suas mãos sobre as delas. Seria só isso, ela jurava para si mesma, mas Paulo tinha medo de não saber voltar ao mundo conhecido, e por isso a deixara em um lugar onde ninguém mais sabia como chegar. Às vezes, Maria Flor o escutava chamando, chamando, chamando, mas só escutava a sua voz, não sabia mais onde é que ele estava. Quando olhava a casa toda, procurando Paulo por todos os cantos, ele não estava em lugar algum, ele não estava mais lá. Então, ela saía por alguns instantes do mundo, e também se perdia de si. Por isso, por analogia, concluiu que Paulo levara o seu ser por engano e, por isso, ela não sabia mais onde colocar a sua existência. Talvez, ela derramara um pouco de si no caminho e se misturara às pedras que sempre existiram. Depois, tentara agarrar a vida com as unhas, mas a vida lhe escapara pelas mãos, abrindo uma ferida que nunca mais se fechou. E feridas abertas eram como abismos por dentro – ela continuava pensando, enquanto guardava os envelopes dentro da sua mochila, tentando colocar alguma ordem em sua bolsa e nos seus pensamentos.
Então, depois de pensar em tudo isso, Maria Flor voltou ao quarto, pegou mais um pote de escuridão dentro do armário e o tomou. Paulo nunca entendia quando ela virava aqueles potes goela adentro, se eles estavam vazios. Mas Maria Flor insistia que eles estavam cheios da escuridão da noite passada, e que ela precisava traduzir a escuridão para os cegos, mas não tinha com o que compará-la, pois a escuridão fora tudo o que eles viram, afinal. Como se ela tivesse inaugurado uma língua para eles, e nessa língua houvesse nomes para os vários tons de escuridão, assim como os esquimós tinham nomes para os vários tons de neve. Paulo não acreditava e franzia as sobrancelhas, mas ela insistia que precisava de entender a escuridão para não perder de vez a sua lucidez. Aquele era o lugar mais estreito em que ela conseguia penetrar, e ela só queria que ele viesse, apesar do sol que estava fazendo no outro lado do mundo. Pela primeira vez, ela queria que Paulo viesse até o longe, para que ela pudesse se perder, e não soubesse mais como voltar para si mesma, e experimentasse os olhos dele, a lonjura deles, imaculados da sua loucura. Será que ele viria? Para que ela lhe explicasse tudo isso sem qualquer palavra? Para que ele a entendesse sem nenhum esforço? Para que ele fosse o eu? Para que ela fosse o você? Então, ela não se sentiria tão sozinha porque haveria alguém para visitá-la em sua loucura, para lhe enviar notícias do mundo, notícias do mundo pequeno, tatuzinhos, formigas e caracol, para lhe contar dos cachorrinhos que acabaram de nascer, não apenas ciclones, enchentes, terremotos, guerras, códigos secretos, pandemia. Para que alguém soubesse onde a sua loucura se encontrava no mapa. Maria Flor pensou e pensou enquanto um dos pássaros alados piscava os olhinhos e esperava o próximo instante chegar. De fato, ela só precisava mesmo de um mapa em alto relevo para se guiar na escuridão. Era tudo de que precisava. Mas Paulo não entendia mais os seus pensamentos, as suas palavras, os seus pedidos. Para ele, tudo aquilo era loucura. Apenas isso, loucura, loucura, meu Deus. Quando ele chegasse, será que a chamaria de louca?
Por isso, arrumou a sua mochila para sair de casa. Dentro dela, colocou o bolo vegano no pote de plástico, algumas frutas, alguns pacotes de bolacha, um saco de pão integral, o caderno vermelho, os envelopes guardados, algumas canetas e as peças diminutas do velho relógio de reverter o tempo. Há alguns meses, ela tentava encontrar os motivos que fizeram Paulo evitar a sua companhia, mas não os encontrava de modo algum. Talvez, quando ela saísse de casa, ele sentiria a sua falta. Talvez, quando ela voltasse, ele a chamaria de poeta e a abraçaria novamente como antes, e tudo voltaria ao normal.
Antes de sair, contudo, lavou a louça, limpou a pia, arrumou a cama e trancou a porta atrás de si. Mas, quando saiu, foi com tanta pressa ao encontro de si mesma que se esqueceu de se levar junto. Ficou no meio do caminho, à deriva, e só seu corpo chegou no instante seguinte. É que o sol estava muito forte e fez com que a sua sombra chegasse primeiro do que ela própria. Então, parou de caminhar e olhou para o chão. A sua sombra ainda estava lá. Por isso, deu mais alguns passos, sentou-se em um banco da praça, debaixo de uma árvore, colocou a mochila ao seu lado e começou a escrever. Confessou, ao primeiro Paulo desconhecido que a lesse, que tinha roubado uma sombra, uma sombra que ainda não tinha pisado. E que, no segundo passo, fora pega em flagrante. Escreveu que, de repente, a sua sombra havia se jogado no asfalto, exausta da luz do sol, procurando alguma coisa que nem mesmo ela sabia. Escreveu que, por onde quer que ela fosse, a sua sombra se arrastava pelo chão, esfolando-se, machucando a sombra de sua face. Escreveu que havia parado no meio da rua, com a mão no rosto, esperando que a sua sombra se retirasse, enquanto os carros buzinavam, xingavam-na e tentavam se desviar. Mas a sombra não conseguia se levantar sozinha do chão. Escreveu que andou o mais rápido que pôde, longe de casa, longe de tudo. Escreveu que não poderia aparecer em casa com aquela sombra colada na sola dos pés. Por isso, esperara até o meio-dia, quando conseguira pisar na sombra por completo. Escreveu que essa fora a sua breve vitória, o seu todo sobressalente, pois, de algum modo, sentia que vencera o obscuro que ainda existia em si mesma, e o sol a ajudara a ocultar a sua sombra dos outros. Mas, depois, quando as horas se passaram, quanto mais a luz incidia sobre ela, mais a sua sombra se projetava no chão e nas outras pessoas. Justo ela que não podia mais roubar a sombra de ninguém, justo ela que não podia mais trocar de sombra com quem quer que fosse, justo ela que não podia deixar a sombra trancada em casa, antes de sair. Não, não podia, estava aprisionada à própria sombra. Então, tentara se desvencilhar daquela penumbra, tentara andar mais rápido do que ela, tentara mesmo fugir dela, tentara se despistar e correr, mas a sombra sempre a encontrava sozinha, na sola dos seus pés. Escreveu que, às vezes, pensava que não conseguiria recuperar o seu corpo aprisionado àquela penumbra, pois tinha a impressão de que a sombra é quem tinha vontade própria, era ela quem a dominava no chão impuro. Escreveu que, simplesmente, acompanhava a sua sombra, tentando carimbar no asfalto a sua figura adormecida, mas a cada passo que dava, a sombra se desgrudava novamente do chão, refrescando as formigas do calor do sol. Escreveu tudo isso quase sem pensar, e depois de ler, ponderou se faria algum sentido ao Paulo desconhecido. Precisava de usar muitas metáforas, e aqueles que conhecessem os códigos secretos entenderiam a sua mensagem subliminar sobre os escravos do pensamento e a escravidão. Os entendedores entenderiam o que ela estava tentando dizer. É claro que ela não estava falando sobre sombras arrastando-se no chão.
Então, Maria Flor parou de escrever e percebeu que tinha urinado na calças, que os seus sapatos e meias estavam encharcados, que até a sua sombra também estava encharcada de urina, e começou a chorar. Não poderia encontrar Aureliano cheirando a urina. Só uma grande nuvem poderia salvá-la, mas o céu estava limpo, e ela não estava preparada para o azul. Por isso, decidiu que voltaria para casa, e que iria viajar no dia seguinte. A cada dia que passasse, iria um pouco mais longe, até que encontrasse Aureliano no local combinado. De certo, ele a reconheceria. De certo, ele viria falar com ela. Então, voltou para casa com os sapatos encharcados e ficou escutando as vozes que riam e zombavam de si.
Quando chegou em casa, tomou banho, lavou os cabelos e alguns pensamentos escorregaram pelo ralo. Por isso, o ralo entupiu. Então, quando usou o condicionador, pensou que, há vários séculos, a cultura condicionava os seus pensamentos e os seus olhos, e tudo o que ela enxergava era sobreposto por olhares muito antigos que não os seus. Nunca conseguia enxergar pelo cerne das coisas. Nunca conseguia ser ela mesma, apenas ela, sem tudo o que o mundo já vivera antes que ela existisse. Ela só conseguia ser depois. Ela só era alguém depois de toda a humanidade já ter sido – ela continuava pensando enquanto enxaguava os seus cabelos. Nascera com um lugar tardio na fila do mundo, e só então ganhara os seus olhos. Os seus olhos eram adoecidos de eternidades, condicionados – ela continuava pensando, enquanto ensaboava o seu corpo. Às vezes, tentava parar de pensar para que as vozes não usassem os seus pensamentos em livros e histórias, mas não conseguia frear o curso dos seus pensamentos. Sabia que havia uma escritora que escrevia sobre ela, que, às vezes, repetia os seus pensamentos, e não queria se transformar em personagem. Queria ser escritora – ela dizia em voz alta para que aquela voz a escutasse. Escritora, escritora, escritora, entendeu bem? Não, não escrava. Mas quanto mais a água caía sobre a sua pele, mais ela pensava que a sua vida, a sua pequena vida, estava sempre por um triz. Poderia ter sido atropelada quando parara para olhar a sombra no chão. Poderia ter cortado os seus pulsos naquela noite. Mas abria o chuveiro, procurando uma água que não fosse nem muito fria, nem muito quente, e quando a encontrava, ela fechava os olhos, deixando que a água do chuveiro sobrescrevesse a chuva que ela trazia em si. E elas, aos poucos, foram enfim se misturando. Mas a água do chuveiro era ainda mais forte do que ela própria. Era da mesma temperatura de um ventre antes de lhe apresentar o mundo. E a água que escorria sobre o seu corpo também levava uma camada do seu desamparo, e porque ela se dissolvia na força centrípeta do ralo, a água também se esvaía circular. Havia no mundo torneiras que controlavam a força explosiva da água, mas se ela pudesse instalar no mundo uma ternura, agora sim, agora não, ela acordaria com um olhar menos impuro sobre o mundo, sobre as pessoas e sobre si mesma, era o que ela pensava, com os seus braços encolhidos ao redor do corpo. E pensava que a coisa mais estranha do mundo era chorar. Era incrível que os mares existiam, assim como existiam as lágrimas, e que ambos fossem salgados. Era incrível como um escorria pelo chão enquanto o outro pela face. E era incrível: a água podia tanto cair em uma lágrima como em uma cachoeira. O que será que tudo isso queria dizer? – ela se perguntava enquanto as suas lágrimas se dissolviam em meio à água do chuveiro.
Então, quando o desligou, sentiu os dedos de Aureliano em sua pele, como sulcos profundos. O arrepio acontecia quando – por serem tão leves – os dedos dele conseguiam, em cada um dos seus poros, soerguer uma flor. Mas não era só isso. Os dedos de Aureliano em sua pele eram arrepios. Todos os pelos do ventre, curiosos, levantavam-se para ouvir o suspiro. E, comemorando a vitória da pele sobre as palavras, acompanhavam os seus dedos em ola, arrepiando-se, arrepiados. Aqueles dedos eram tão leves, tão leves, que escorregavam sobre a sua pele, cortando-a em quadro pedaços.
Então, Maria Flor pensou que existia o frio e o calor para a pele, e o morno e o gelado. Existia o doce e o amargo para a língua, e o azedo e o estragado. Existia o ruído e o silêncio para os ouvidos, e a música e os latidos. Existia a claridade e a escuridão para os olhos, e a penumbra e o opaco. O mundo estava sempre querendo se expressar de alguma forma, era ela que, às vezes, não lhe prestava muita atenção. Por isso, percorreu os olhos ao redor, olhando tudo com força, guardando cada imagem em seus olhos, para quando Aureliano a olhasse por dentro, para quando Aureliano lesse os seus pensamentos, e lhe disse que o encontraria no dia seguinte, como eles haviam combinado.
Depois, Maria Flor conseguiu pentear os seus cabelos. Por serem tão compridos, eles estavam tão embaraçados quanto estavam as suas ideias naquele momento. Pensava que os seus cabelos em desalinho eram os seus pensamentos confusos. Mas, ao menos, enquanto os penteava, havia alguma ordem na sua cabeça, mesmo que a ordem estivesse para o lado de fora. Então, de repente viu os seus cabelos se esparramarem no assoalho, dando voltas e mais voltas no chão. Eles não paravam mais de crescer, e a escova de cabelos estava cheia de pensamentos enganchados. Com alguma dificuldade, Maria Flor tentou enrolá-los por dentro de um coque, mas já não sabia o que era real e o que era sonho, e se apressou em ser.
Mais tarde, quando Paulo chegou, não contou a ele que tinha saído com a intenção de viajar. Mesmo assim, ele não a abraçou como nos outros dias. Então, Maria Flor não sabia mais o que fazer com os seus braços. Não tinha os braços do tamanho do mundo, mas eles eram do tamanho exato de abraçar alguém. E, por isso, foi até a calçada e tentou abraçar um transeunte, mas ele se desvencilhou, enquanto ela, muito constrangida, tentou lhe dizer que abraçar era encostar um coração no outro e que o sol nunca faltava ao dia de amanhã. O homem a chamou de louca e Maria Flor, por alguns segundos, parou de existir. Viu o homem se afastar, arrastando os passos por entre as folhas da calçada, e suspirou. Então, era louca mesmo. E pensou, assim por si, que ele só a tinha chamado de louca porque ele não conhecia o porão do mundo ou porque ele nunca encontrara as escadas para o abismo. “Você já encontrou?” – ela perguntou em voz baixa para o homem que já estava longe, atravesssando a rua. Não, ele não respondia. Ele não parecia escutar o que ela dizia em balbucios. Sentiu o vento levantar os seus cabelos e a barra do seu vestido – e continuou pensando, parada no meio da calçada. Que ela soubesse, ninguém nunca mandara construir escadas para o abismo. E ficar abismado, entretanto, era cair para um dentro sem fundo, era cair e cair, até o longe que a separava de um outro alguém. Ele a chamara de louca de um lugar distante, de onde mais ninguém conseguia escutá-la. Só por isso ele a chamara assim. Então, Maria Flor pensou que eram essas as distâncias que os seus passos não alcançavam, como ela não alcançava mais Paulo, nem Paulo a alcançava também. Parecia inútil correr atrás daquele homem para lhe dizer que ela não era louca, correr atrás dele com os seus pés de pássaros ou as suas asas de bule. E mostrar-lhe que não, ela não era louca, não. Para sempre, ele a levaria para si como louca, para sempre ele acharia isso. Se a encontrasse no meio da rua, ele a apontaria e diria para os seus amigos: “Está vendo aquela moça? Ela é louca.” E todos a chamariam de louca. Paulo seria o noivo da moça louca. Ela era louca, mesmo. Olhou para os próprios pés que nunca aprenderam a andar e a se firmar sobre a terra. Olhou os próprios pés com lágrimas nos olhos. As lágrimas despencaram sobre os seus pés. Por isso, também em voz baixa, ela disse ao homem que caminhava longe: “Ainda não é a hora para eu descobrir a morte, eu ainda não quero, pois nós só morremos quando entramos no amanhã, quando o amanhã finalmente chega, sem ser deixado para o dia seguinte, quando o amanhã já é agora, entende?” Sim, ela teve coragem de lhe dizer tudo isso em seu pensamento, como se todos os unicórnios existissem realmente. Não, eles não existiam, ela sabia que eles não existiam. Aureliano lhe dissera em um programa do rádio que eles não existiam. Ainda assim, mesmo que as palavras daquele homem na rua dissolviam-se no vento, ela ficou ressentida como um dragão, como um grifo, como um minotauro à beira do esquecimento. Ele deveria ter ficado feliz porque ela lhe dava um lugar nesse mundo para existir: ela lhe dava um coração para se importar com as suas duras palavras. Ainda assim, ela sabia que ele tinha de voltar a ninguém; ele e todas aquelas vozes tinham de deixá-la em paz.
Então, quando Maria Flor fechou os seus olhos, percebeu que ela era toda uma pessoa adentro. “Calma”, ela disse a si mesma, “o eu que me invade é só eu mesma, sem conseguir escapar”. Nesse momento, um carro buzinou com força, para que ela saísse do meio da rua, e ela voltou a si mesma, dizendo que não, ela não era Macabéa, não. Ela era Maria Flor. E tentou frear os seus pensamentos para que não se tornasse a personagem de ninguém. Ninguém a escreveria. Ela não seria personagem de ninguém. Para que ninguém escrevesse a sua história, ninguém, entendeu bem?
Depois, quando voltou para dentro de casa, pegou uma velha caixa de fotografias e, dentro dela, ficou procurando os motivos que fizeram Paulo afastar-se dela. Olhou cada uma das fotografias, procurando os seus próprios olhos, o universo por dentro deles, mas uma das fotografias começou a envelhecer, como se ela abrisse um espaço para o tempo transitar entre os seus sais. Não entendia mais as fotografias daquela caixa. Com a sua câmera de fotografar o iminente, ela só conseguia aprisionar uma fração do tempo, nunca conseguira aprisionar sequer uma fagulha do espaço, e era por isso que ela se via em fotos, mas era toda sem lugar. Revirou a caixa e procurou uma outra fotografia, mas a fotografia começou a enlouquecer, e uma voz lhe disse que não, aquilo já não era mais a realidade aprisionada, aquilo já era a pintura, uma pintura surrealista. Assim, quando ela levantou a cabeça e enxergou o seu rosto no espelho do quarto, ela percebeu que tinha os olhos marejados de tinta. Dois fios azuis escorreram dos seus olhos e mancharam a sua blusa. Limpou as lágrimas com as costas da mão, e a mão se manchou de tinta também. Mostrou-a para Paulo, que se aproximava, mas ele lhe disse que a sua mão estava seca por causa do detergente. Então, Maria Flor continuou olhando para as mãos borradas de azul, e percebeu que as suas unhas cresciam rapidamente, insistiam, insistiam, nunca se davam por findas. A princípio, não se incomodou, mas guardou as mãos no bolso para que Paulo não visse as suas unhas enormes. Afinal, faltavam-lhe garras para apanhar a vida no ar. Mas, quando cresceram demais, ela pegou o cortador de unhas e tentou cortá-las. Era espantoso como as unhas não desistiam de crescer por mais que ela lhes cortasse. Elas chegavam a ser inconvenientes. As suas cutículas se agarravam às suas unhas em sua função de impermeabilizar o seu interior, e ela estava protegida por elas. Finalmente – ela pensou – tinha unhas para se agarrar à vida, unhas para agarrar o que quer que fosse. Garras. Por isso, foi até a escrivaninha e começou a escrever mais uma carta para os Paulos desconhecidos, a escrever com as mãos cerrando os dedos, com toda a força do mundo conhecido, num grande esforço de tradução da loucura. Quem sabe, algum deles pudesse lhe explicar o caminho? Quem sabe, algum deles pudesse encontrá-la? Em que parte do mundo ela se perdera? Num brinquedo no meio da chuva? – ela escrevia. Numa palavra quebrada ao meio? – ela escrevia. Num livro na estante: inalcançável? – ela não sabia. Então, escreveu que estava num lugar onde o tempo ainda não chegara, e todo dia era antes. E que ela ainda se lembrava: antes, no quintal onde ela brincava com Paulo, ela enfrentava as amoras com as mãos vazias, deixava a vida sangrar até o fim. Como se ela as trouxesse escorrendo entre os dedos, e isso fosse tudo o que ela pudesse dar ao mundo: as amoras esmagadas da sua loucura, o invisível fruto diluindo-se no nada, sorvido com a língua que ela inventava, aquela língua sem tradução. Escreveu tudo isso quando, então, sentiu o cheiro das amoras esmagadas entre os dedos, e escreveu com ainda mais urgência. Escreveu para Paulo, para todos os Paulos que existiam no mundo, a fúria do seu amor, a fúria da sua infância,a fúria da sua inocência.
Escreveu que a sua casa estava vazia como um país sem fronteiras deixado aos pássaros. Escreveu que eles iam e voltavam, ao contorno dos ventos, pousando aos bandos sobre a cabeceira da cama, carregando os lençóis janela afora. Escreveu que, desde que o seu pai saíra da sua cama, ela via os pássaros, muitos pássaros, pássaros que traziam o vento no bico, pássaros que já tinham o vento no nome, pássaros que rasgavam um dos ventos ao meio. E, depois de tudo, eram tão vastos os vazios que Paulo deixava ao seu lado, que ela precisava se encolher à noite, em um lado do colchão, num espaço onde ela coubesse inteira. Escreveu que a ausência dele era tão grande que quase a derrubava do mundo, que quase a derrubara na outra noite. Como se tudo em sua vida resultasse para si mesma, mas ela tivesse de voltar às pressas de uma terra estrangeira, onde não compreendia nem a sua língua nativa nem o seu silêncio. Era um silêncio intraduzível. Por isso, escrevia aquela carta com urgência, qualquer coisa que ainda se lembrasse, qualquer coisa que não lhe deixasse ainda mais louca. Um caderno inteiro para o mundo, mesmo que ele nunca mais a lesse. Se ela não podia ser escritora, então, escreveria cartas para o mundo, e saíria pelo mundo com o seu vestido lilás. Desse modo, era como se ela ainda pudesse conversar com alguém, de alguma forma, pois do que mais sentia falta – nos tempos de namoro com Paulo – era das conversas que atravessavam as noites sobre os caminhos que se abriam para dentro. Escrevia naquele caderno para não importunar mais o noivo, nem desabar em seus braços com os seus escombros, para responder ao mundo que estava tudo bem, mesmo quando não estava – ninguém sabia dos tormentos que ela embalava por dentro. E também escrevia naquele caderno para não dormir à porta de Aureliano como um cão cego que desconhecesse as rotas do mundo. Escrevia para se aproximar de suas belezas tão humanas porque ainda precisava delas. Mas ela sabia: precisar era se aproximar milimetricamente do que lhe fazia falta. Era se acercar do que ainda não era e procurava fora de si como se, dos seus bolsos furados, ela tivesse deixado cair um eu, e alguém o encontrasse primeiro. Por isso, ela ainda não era. Escreveu que, naquele exato instante, uma flor se abria na sua janela, uma flor que escolhia a vida. Por isso, ela decidira que viveria tão intensamente o momento presente que quase chegaria atrasada ao momento seguinte. E isso era tudo – ela se despedia do desconhecido destinatário com um grande abraço.
Então, depois de dobrar a carta e guardá-la num envelope, Maria Flor abriu a porta da sala e atravessou a rua. Em frente à sua casa, havia uma pequena praça por onde alguns bancos estavam dispostos. Ela sentou-se na ponta de um dos bancos, colocou a carta ao seu lado, sob uma pedra pesada, e ficou olhando para os próprios pés, escutando o que as vozes lhe diziam. De algum modo, encurtou a respiração para que o ar não chegasse ao mais fundo de si mesma, para que o fundo permanecesse intocável, e não se revelasse a nenhuma das vozes. Queria entregar a carta para alguém, não apenas deixá-la no banco, mas ela nunca escrevera para abismos, tinha medo do que a puxava para baixo: uma flor ao lado do banco. A sua vida esbarrava-se naquela flor, diluindo a amplidão dos seus olhos, mas só a solidão sabia de cor onde Maria Flor existia, e por isso suspirou. Pensou que todas as outras pessoas tinham de consultar um mapa de si mesmas, mas ela, ela entrava lentamente na solidão como se, em si, ela existisse em duas, como se ela se dividisse ao meio para não se derramar no vazio. A distância entre ela e aquela flor eram imiscíveis, mas, agora, ela, ela, Maria Flor, estava tão naturalmente sozinha que inventara várias pessoas de si mesma para que lhe fizessem companhia naquela existência tão solitária. Eram as vozes, elas ainda iam e ainda voltavam, mas quando iam, Maria Flor até sentia a falta delas. No seu silêncio, cabiam muitas vozes e, às vezes, ela achava estranho não dividir o seu silêncio com elas, ficar com o silêncio só para si. No seu ser, cabiam outros seres e, por isso, ela se afastava um pouco para o lado para coexistir com o outro em sua própria loucura. Às vezes, dividia com eles os seus olhos, deixava que eles vissem o que ela estava vendo, estendendo no ar os seus pensamentos, deixando que eles soubessem o que ela estava pensando, como quem pudesse matar a fome ou dividir o seu pão com um faminto.
Depois, por um momento, quando as vozes voltaram a gritar, Maria Flor afastou-se para o lado de si, mas estava tão próxima – do vazio que ela ainda não era – que se aqueceu na grande incompreensão do mundo. Estava ali, diante do mundo, diante de todas as vozes, com o seu ser puído, com o que conseguira existir da vida que ela sequer entendia. De algum modo, tentou compreender o caminho que faria no dia seguinte, em sua pequena viagem, e percebeu que envelhecia nos cabelos mais rápido do que podia compreender. Naquele instante, sentiu que Paulo iria embora a qualquer momento, e que ela estava ao meio de tantas partidas. Sentiu que ele tinha razão, pois todas as noites, ela o traía com Aureliano. Ela estava ao meio de tanto partir. Há alguns dias, o seu pensamento estava muito confuso, mesmo que o sol entrasse pela sua janela. Por isso, a iminência da partida de Paulo era tão dolorida, pois ela seria, de algum modo, devolvida ao relento do mundo, aonde ela foi parar desde que nascera. A iminência da sua partida vinha lembrar-lhe que ela era sempre um, e que estava sozinha de si. Não havia mais onde se escorar para existir, existir era sempre solto, era sempre à beira do nada, especialmente, quando as vozes não estavam dentro dela, quando não estava perto de Paulo. Perguntou-se por que pensava tanto, meu Deus, meu Deus, mas lembrou-se de que os pensamentos é que moviam os seres humanos. Eles construíam os edifícios, as catedrais, as máquinas, as obras de arte e até as relações humanas com base nos seus pensamentos. Como é que algumas células e substâncias químicas podiam desencadear a história da humanidade? – um deles lhe perguntava. As células neurais não tinham ciência dos seus empreendimentos porque a consciência lhes ultrapassava. E pensou que, talvez, os seres humanos também não tivessem ciência dos seus empreendimentos porque o universo lhes ultrapassava também. Pensou tudo isso enquanto algumas gotas de chuva caíam do céu. Ela tentou proteger a carta por dentro da blusa, mas deixou que algumas gotas da chuva lhe atravessassem da cabeça aos pés. Por isso, ela estava assim, perfurada de chuva, alvejada de transparentes. Respirou fundo antes de voltar para casa, pensando que não poderia amar Paulo sem respirar. Ela não poderia amar a pulmão vazio. Ela precisava voltar. Então, olhou a árvore perto de si. Que todos os Paulos a compreendessem – ela pensava: uma árvore era feita para ficar ao relento, ninguém precisava trazê-la para dentro. Sob a terra, a árvore germinava e se iniciava em outras árvores, mas ela não, ela precisava de voltar para casa e sorrir. Então, quando a chuva parou, ela deixou a carta no banco, sob a pedra pesada, e voltou para casa. Como por um milagre, a chuva parou. E ela pensou que isso era um sinal.
Quando entrou em casa, foi até o banheiro para escovar os dentes. Ela, que fazia isso com tanta frequência, estava há vários dias sem fazê-lo, e trazia muitos gostos amanhecidos, sobrepostos uns aos outros: gostos do nada, gostos da inércia, gostos do vazio. Os seus dentes estavam, sobretudo, sujos do silêncio e das palavras que ela ainda guardava só para si. Então, lembrou-se de quando era criança e, com muita dificuldade, tentava alcançar a pia do banheiro ou abrir a torneira ou colocar a pasta dental sobre a escova. E, quando conseguia, era uma alegria conhecer o mundo e aprender os hábitos das pessoas adultas. A vida era alegre porque era sempre para depois, uma promessa de amanhãs. Mas, ali, com a escova na mão, ela se perguntava se a vida era só isso. Ela não sabia responder. Justo ela, que era mais fraca do que a água que descia pela torneira e se esvaía pelo ralo. Justo ela, que não sabia o que fazer dos laços que os ponteiros do relógio faziam no tempo. Então, do outro lado do espelho, viu a sua imagem indo embora, e ficou ali pensando, enquanto escovava os dentes de lá para cá, de cá para lá. Ela viera do nada, e tinha um amanhã encravado, a ponto de transbordar a qualquer aurora. Ela vivia no nada quando ainda nem existia. Até nascer, ela não tinha vida alguma, mas, depois de nascer, ela se agarrara à vida como se sempre tivesse existido, e fosse eterna, sem começo, meio e nem fim. Ela agia como se a vida não pudesse mais acabar. Todos os que nasciam lutavam desesperadamente para continuarem vivos, apesar de terem vindo do nada. E ela, ela também não queria se desgarrar do mundo. É que tudo corria para se fundir, até um espermatozoide, de tamanho microscópico, desencadeava uma busca cega pela existência – ela pensava enquanto se olhava no espelho. Um dia, antes da concepção, quando estava separada em dois corpos, ela sabia como não existir, mas depois de unida no corpo da sua mãe, ela já não sabia mais como morrer. Morrer não era tranquilo. Ela não ficava tranquila para morrer como ficava tranquila no tempo em que ainda nem existia, e nem sabia de vida alguma. Morrer era separar os seus pais um do outro, separar os seus pais de si. E ela não sabia como morrer o miolo de si. Ela não sabia como morrer o filho que nunca tivera – ela continuava pensando, enquanto fechava o pálido armário do banheiro e notava nele alguns borrões.
Depois, foi até a cozinha e conseguiu lavar a louça. E isso foi para ela um trabalho de Hércules. Havia uma sujeira intransponível sobre a pia, a sujeira de vários dias acumulados, a sujeira de vários séculos. Ela não tinha qualquer coragem para vencê-la, a esponja sumindo entre as suas mãos, à espera de uma força que viesse de suas ancestrais, de um mundo maravilhoso, de um passe de mágica, qualquer coisa assim. Mas era ela que deixava a água cair sobre os copos e os pratos transparentes, enquanto a água, também transparente, esvaía-se devagar. O vidro era também uma água, uma água muito dura, quiçá, demasiadamente embrutecida e, por isso, quebrou-se entre os seus dedos quando ela o apertou, talvez de propósito. Maria Flor apertou a vida entre os seus dedos e os cacos caíram pelo chão. Ela olhou a vida partida em duas. Olhou o vidro da janela. O ser humano não era impressionante? – ela pensava, enquanto via o sangue escorrer pelo dedo. Um dia, ele juntara um punhado de areia e de cálcio e inventara algo tão transparente quanto o vidro. O vidro era algo sólido, mas um mundo inteiro lhe atravessava até alcançar os seus olhos. Não, o vento não atravessava o vidro, e ambos eram transparentes. Mesmo sendo também invisíveis, o vidro da janela e o vento lá fora eram duas transparências que se esbarravam, e do choque entre elas devia nascer o vazio ou os pensamentos – ela continuava pensando.
Então, por um momento, devido ao corte que fizera no dedo, o sangue de Maria Flor misturou-se à água da torneira, mas ela pensou que se pudesse inventar no mundo uma ternura, assim tão cândida, assim tão inocente, ela não teria vontade de se esvair pelas veias. É que, para existir, ela tinha de ser impermeável, mas não era, não. Aquele corte em seu dedo era uma prova disso. Fosse lá como fosse, era incrível o milagre que estava acontecendo em seu dedo. De algum modo, existia o milagre de se estancar, de criar cicatrizes que não lhe deixavam esvair por completo porque feridas abertas eram como abismos por dentro. O ser humano, que era tão frágil, inventara objetos ainda mais frágeis do que ele: objetos que podiam se quebrar. Que Paulo não a deixasse mais cair no chão, ao que ela não poderia mais se reunir. Por isso, ao pensar nisso, sentiu-se um pouco tonta e se segurou contra o mármore da pia para não desabar no chão. Por isso, ela não saiu da cozinha do mesmo modo como havia entrado. Estava tonta. Mas não estava pronta para existir. Aquelas paredes eram de cimento mas, nelas, havia muitas rachaduras. As paredes podiam desabar sobre ela a qualquer momento, soterrando-a a três mil versos de profundidade. Era isso, era isso, sim. Então, de repente, uma voz a chamou, dizendo-lhe que se chamava Paulo. Pelo tom de voz, Maria Flor soube que não era seu noivo, mas presumiu imediatamente que ele fosse um dos desconhecidos, o Paulo para quem ela escrevera uma carta. Mas, sem que Maria Flor dissesse nada, sem que ela sequer pensasse mais qualquer coisa, Paulo a chamou de louca, gritou-lhe louca muitas vezes. Então, Maria Flor respondeu-lhe, entre murmúrios quase inaudíveis, que os loucos eram aqueles que já tinham visitado o porão do mundo, que sabiam onde esse porão se escondia no mapa, que chegavam da rua garoados, alvejados de transparente, alvejados com a emoção da noite. Disse-lhe, bem devagar, que os loucos tinham um mecanismo enguiçado para crescer para cima, que eles cresciam enviesados, como um elevador parado por onde subissem e crescessem as trepadeiras na primavera. Mas, de qualquer modo, ela ficou abismada com o que Paulo lhe dissera. Então, era assim que ele agradecia a sua carta? Ele atravessara o seu silêncio para lhe chamar de louca. Ele não pedira licença para estar no seu ouvido. Ele não pedira licença para ler os seus pensamentos. Ah, ela não queria encontrar aquele Paulo por dentro, como se ela tivesse esquecido a vida aberta, e piscado os olhos, e ver que ele já estava no interior de si, de repente, com todos os seus navios aportados ao mar, colonizando-a. Ela precisava de, ao menos, atender a porta, caminhar até ele, abraçá-lo, convidá-lo para se sentar, e depois lhe perguntar como é que ele estava, se estava bem. Aquele Paulo precisava de trazer-lhe um alguém até os seus olhos. Ah, era assim que ela se acostumara a viver, era assim que ela se acostumara a encontrar as pessoas: pelo lado de fora. Aquele Paulo precisava de trazer-lhe algum enigma em silêncio, algo que ela não vislumbrasse de imediato, mas que ela tentasse buscar com os seus olhos fechados. Era essa a distância que lhe permitia conhecer um estranho. Mas, não, aquele Paulo já estava no interior de si mesma, no ser que ainda era dela por direito, no ser que ela encontrara no mundo por abandono. E ele não vinha sozinho ao seu dentro, ele trazia outras vozes barulhentas que discutiam sobre a cor das paredes. Ah, que ele saísse, ela pedia em murmúrios, que saíssem todos os outros, pois ela já estava por demais povoada de si. Não, aquele Paulo não era confortável de ser. Ele tentava expulsar Maria Flor de si mesma, mas para onde ela iria, meu Deus? De algum modo, ela não sabia se aquele Paulo a estava puxando para baixo ou para o fundo, mas sentia que, para ele, ela era o seu inimigo mais externo. Por outro lado, era preciso abrir os braços para Paulo porque ele estava se deixando ver, ele estava sendo tomado à sua própria visão. Ela corria o risco de vê-lo por inteiro sem amá-lo, e esse era o grande medo de qualquer um. Por isso, Paulo lhe doía. Ela não tinha forças para arrastar aquela dor para longe de si, a dor que Paulo lhe provocava quando ela, simplesmente, existia. Ele sabia o que ela pensava, assim como ela sabia o que ele pensava também. E tanto ela quanto ele estavam invadidos de si mesmos. Ah, agora, ela estava nua de espírito e, por isso, ela tentava ser o mais discreta possível: ela tentava ser só o que lhe cabia, sem se transbordar para o que não existia, porque o que não existia pertencia a Paulo. Agora, ela precisava de uma ponte para atravessar os dois mundos, uma ponte para o que nunca existira. Que ela se atravessasse para o outro lado de si porque aquele Paulo conseguira chegar mais em si do que ela mesma, e ele estava sedento de ternura. Ah, mas não adiantava ela lhe dar o seu caderno vermelho, a única ternura que possuía – ela pensava – porque as coisas que estavam ali escritas já tinham sido pensadas, e agora era tarde demais. Aquele Paulo teria de vasculhar por baixo de outras pedras, para encontrar as suas próprias ideias, mas as ideias se mexeriam como minhocas descobertas na terra. E agora, e agora? Aquele Paulo exigia que ela se desocupasse, mas para onde ela iria, meu Deus? Desde que ela nascera, aquele corpo fora a única pessoa que ela encontrara para ser. Ela estava de si mesma na borda, era de si mesma marginal. Ah, se ela tivesse de se abandonar, não encontraria outro ser vazio para ocupar. E onde ela acomodaria as suas lembranças, os seus pensamentos? Não, ela não sabia, mas sentia que, de repente, sua solidão ficara povoada de pessoas, de pessoas que ela não conhecia, e ela não conseguia mais ficar sozinha de si. Em murmúrios, disse para aquele Paulo que a lou-cura tinha uma cura por dentro de si, e que a realidade queria alinhavar os sãos. Disse-lhe que ela tinha testemunhas de que ela existia, que as traças, as aranhas e as muriçocas viviam naquela casa por compaixão, para que nem tudo fosse solidão ao seu lado. Sim, ela existia, ela existia, ela existia, sim – murmurou enquanto apertava os dentes. E não, não seria a personagem de ninguém. Então, aquele Paulo começou a rir, e ela foi entrando no canto do mundo, foi entrando, entrando até enlouquecer três centímetros de exaustão.
Ainda assim, ela tentou dizer-lhe que não era em si mesma aquela vida, que era fora de si, e que ela já estava molhada da chuva que nunca caíra. Então, pelo modo como ele dissera o seu nome, Maria Flor entendeu que aquele Paulo queria saber o que a chuva tinha a ver com tudo aquilo, mas ela lhe disse: “A chuva desaba, a chuva é iminente, a chuva não se sustenta no céu. Como posso, então, cortar os meus pulsos?” Foi só então que aquele Paulo a compreendeu, e ficou em silêncio também. Ah, quando o futuro era do pretérito – ela continuava pensando – o presente ficava estagnado num agora interminável, e isso podia estragar o inexplicável, estragá-lo com respostas.
Então, de repente, ela voltou correndo para o quintal enquanto começava a chover e a trovejar de verdade. E, por mais que ela tentasse voltar para casa, e tentasse, e tentasse, ela estava sempre à espreita de um trovão, encolhida num canto. Era como um trovão que ela tivesse ouvido pela primeira vez na vida, sem saber muito bem o que era aquilo: o desmoronar do futuro, amontoado no chão, ou uma rachadura no meio do mundo, meu Deus. De todo modo, ela sabia que um trovão não lhe obedecia, tampouco a chuva lhe obedecia. Pelo contrário, a chuva manchava o seco de transparentes. A chuva afunilava-se no céu e caía apenas sobre a sua casa. Era inútil fugir. Então, lembrou-se de que os trovões que ela ouvira antes nunca lhe fizeram mal, nem a mataram, nunca. Por isso, pensou que não deveria ligar para os seus estrondos, pois ela tinha memórias antigas de trovões. Lembrava-se de trovões envelhecidos, e sabia que eles eram inofensivos. Sabia, ela sabia, sim. Respirou fundo, esperando que os trovões do agora fossem tão indefesos como todos os outros que ela já escutara. Pensava que bastava construir do tempo mecanismos para se acalmar de trovões. Mas o mundo – ela suspirou – o mundo era tão mais antigo do que ela. Ela não tinha memórias para lembrar-se dele, para lembrar-se dos tempos em que ainda nem existia, ou para se acalmar dos imprevistos. Sim, ela tinha medo. Ela tinha medo daquele Paulo, de todos os Paulos daquela cidade, de todos os Paulos que existiam no mundo, tinha medo da loucura, como um cachorro que não compreendesse os trovões, por mais que alguém tentasse lhe explicar. “Sou eu esse cão, não sou?” – ela perguntou para o Paulo da sua cabeça, ainda em murmúrios, mas ele silenciou, enquanto ela tentava enxugar os olhos encharcados de chuvas ou de lágrimas, eu não sei.
Então, ela se perguntou: e se o mundo que ela via também não existisse? E se ele só acontecia nos olhos de quem o via? E se as coisas tinham combinado de acontecer ao mesmo tempo, e os outros chamavam aquilo de realidade? E se essas coisas não existiam em si mesmas, e tudo fosse uma grande ilusão? E se todo mundo estava sonhando o mesmo sonho ao mesmo tempo? E se todos tivessem ficado loucos ao mesmo tempo? E se os pássaros que se amontoavam ao seu lado fossem a única realidade que, de fato, existia? E se o mundo da loucura fosse o único mundo que realmente existia? E se, ao enlouquecer, como o seu Paulo dizia que ela estava enlouquecendo, ela colocara um pé no verdadeiro mundo? E se aquele outro Paulo existia em algum outro mundo, incomunicável a todos os outros? E se ela, Maria Flor, ela, também era incomunicável para eles, mas existia em paralelo, encostada neles? E se ela própria não existia, se ela tinha sido inventada? E se alguém a tivesse escrito? E se, quando as portas da loucura se abriram, os mundos se misturaram, e agora, ela e Paulo e a escritora estavam atrapalhados, sem saber o espaço de cada um? Então, era tudo tão confuso que ela começou a chorar, a chorar, a chorar. Mas por que ela estava chorando era difícil de dizer. Talvez, de si mesma ou contra si mesma, ela chorasse. Talvez, contra o seu abrandamento: uma presa apanhada no sono sob o morno do sol, contra o indefeso em si mesma, ela chorasse. Ou, talvez, pela esperança: um cacto encharcado de água à revelia da chuva e do sol, do inesperado dele, por uns espinhos já tão flexíveis e vulneráveis, ela chorasse, meu Deus. Não, ela não sabia por que estava chorando, por mais que buscasse respostas, e se cansou de ser. Talvez, ela chorasse apenas pela falta de defesa naquele instante, pela exposição repentina do seu dentro mais vulnerável. Então, quando Paulo, o seu noivo, aproximou-se dela, no meio da chuva, ela fechou os seus olhos até enxergar a escuridão. Ele não estava nervoso por vê-la encolhida no quintal, mas diminuiu os passos até que eles não fossem mais brutos do que umas folhinhas pousando no chão, e a apanhou pelas mãos, levando-a para dentro de casa. Que ele não a olhasse com força, ela continuava pensando, pois ela poderia desmoronar ao mínimo sopro de uma criança. Por isso, dentro dos seus olhos fechados, ela guardou o escuro que conseguiu roubar de algumas noites sem fim, e teve de apertá-los muito bem porque, dentro deles, já existia o medo comprimido. Alguma estrela deve ter ido junto – ela pensava – o canto de algum grilo também. Com certeza, o silêncio dos pássaros adormecidos, ou a paz de dormir sem acordar no meio da noite em sobressalto. As suas noites de insônia eram tão longas, mas tão longas, que ela amanhecia delas muito envelhecida, pois muitos anos se passavam até o outro dia chegar. Mas, de qualquer modo, Paulo olhou-a com ternura, e não conseguiu adentrar a mão em seu peito para esmagar flor alguma que tivesse nascido entre as pedras e os musgos. Parecia até que ele achava injusto com a esperança ou desleal com a resistência. Parecia até que compreendia. Então, Maria Flor suspirou aliviada por não ser chamada de louca. Sentiu que havia uma força lhe puxando para o centro. Isso era o que a deixava virar de cabeça para baixo quando o mundo dava voltas, sem que o oceano se derramasse sobre ela, sobre mais ninguém, e suspirou com esperanças. Paulo ligou o chuveiro, esperou que ela tomasse banho, e então, tomou o seu. Depois, colocou-a na cama e a cobriu com uma coberta, e por esse gesto, contudo, ela soube que estava enlouquecendo, estava, sim. Tudo poderia acontecer com quem estivesse enlouquecendo. Paulo poderia lhe atirar uma certeza, assim vinda de longe, assim vinda não se sabe de onde, de qual ontem ou anteontem, e lhe acertar bem no meio do peito. E então, Paulo poderia acertá-la tantas tantas vezes, com a realidade, que ela ficaria com o seu peito todo perfurado, atravessado de vazios. Mas ele não disse nada, ele apenas a olhou com ternura, ele apenas a cobriu com a coberta e alisou os seus cabelos, tentando tocar a sua escuridão com a ponta dos dedos. Maria Flor procurou uma saída, mas não sabia onde é que a escuridão começava, nem onde é que a noite findava. Uma era por dentro da outra, mas podia ser que ela, Maria Flor, ao tocar a mão de Paulo também, tivesse deixado as suas impressões digitais sobre a escuridão, e isso seria a prova irrefutável de que ela não sabia viver no escuro, de que ela precisava se amparar a todo instante, tateando a realidade como um cego, enquanto pedia, por dentro dos seus pensamentos, para que as vozes a deixassem viver por mais um ou dois para sempres, ou até que ninguém mais percebesse o impossível escondido entre as palmas das suas mãos. E isso era tudo. Então, ela soube que um dos dois estava ficando louco, estava, sim. Provavelmente, Paulo. Provavelmente, Paulo. Ela tinha certeza disso, mas ela também sabia que nunca fora a maioria, e que não tinha mais ninguém para endossar o que ela conseguira ser ao longo dos anos. A sua avó tinha morrido, e ela estava tão sozinha com suas certezas como se elas fossem realmente as leis da loucura. Então, pela primeira vez, ela começou a considerar as coisas que pensava como sendo uma loucura, como sendo uma certeza que só se passava em seus olhos. Sim, talvez, fosse isso: talvez, ela tivesse os olhos particulares para si mesma. Se ela tivesse os olhos particulares para si mesma, ninguém mais poderia entendê-la. Ela teria olhos olhando para dentro, para as veias e os tecidos moles, não para o mundo, não para a cidade de São Paulo, não para o outro, meu Deus. E isso era tudo. Se fosse assim, a louca seria ela. A escuridão era isso, era estar sempre esbarrando num abismo. Sim, havia muitos abismos ao seu redor, e, em silêncio, ela estava tentando gritar bem do meio de si. Quem sabe, alguém conseguisse escutá-la? Quem sabe, Paulo conseguisse escutá-la? Como se ela estivesse se desmontando aos poucos e, logo, alguém teria de lhe guardar em uma caixa, ao alcance de todas as aranhas do quarto. Era como se ela tentasse ficar em pé, mas o mundo girasse depressa demais, e ela caísse para um dos lados, sem nunca conseguir se firmar no centro. Então, pensou que enlouquecer era tão solitário. E que isso era tudo, meu Deus.
De qualquer modo, naquela noite, dormiu profundamente. Mas, no outro dia, depois que Paulo saiu para o trabalho, Maria Flor pegou a sua mochila, fechou o portão atrás de si e se perdeu. Passou muitas e muitas horas sem voltar para casa porque pensava que havia sempre outros seres que a esperavam na porta de saída, e que ela já não podia voltar em paz para si mesma. Pensava que havia outros seres que, se não eram ela, estavam do lado de fora, não estavam onde ela poderia ser. Eles não estavam existindo juntos, em concordância. Eles a chamavam para que ela também se retirasse, pois o seu ser já era deles. Meu Deus, ela era excessiva para si mesma e estava se derramando – ela continuava pensando com aflição, enquanto errava pelos caminhos. Placas de rua, bancos, postes, lojas e semáforos. Cachorros vagando no meio da solidão.
E foi assim que, chegando a uma vila de pequenos sobrados, ela entrou pela porta errada do mundo. Havia várias portas disponíveis, espalhadas pelo caminho, mas ela entrara naquela porta que sempre a deixava para o lado de fora. Era uma porta de eternamente sair. Maria Flor tentava entrar, mas não havia mais o lado de dentro porque o dentro estava misturado ao exterior e se esbarrava no aberto – ela continuava pensando em murmúrios, enquanto tentava abrir uma das portas da rua.
Naquele momento, um homem alto e grisalho perguntou-lhe se ela estava tentando arrombar a porta do seu vizinho, mas ela respondeu que não sabia mais explicar o que era o dentro porque, no seu primeiro grito, no seu primeiro choro, ela já estava para fora da sua mãe – e depois de dizer isso, começou a chorar. Se ela nunca entrasse – continuou aos prantos – estaria sempre no lugar de quem já saiu. E se ela saísse de si, já estaria dentro do mundo – disse isso, limpando os olhos e o nariz na manga da blusa.
– Mas o que abriga o universo? O universo está dentro do quê? – ela continuou perguntando ao homem. Mas o homem não entendeu nada daquilo e respondeu:
– Se a senhorita não parar de arrombar a porta, eu vou chamar a polícia.
Então, imediatamente, Maria Flor largou a maçaneta da porta e esperou que a porta se abrisse sozinha. A porta não se abriu. Era com essa noção que ela não sabia lidar porque padecia de proteção como um caramujo também padecia. O universo a tinha deixado descoberta. Todos os Paulos a tinham deixado descoberta, e agora ela estava tentando encontrar a saída. Por isso, correu para longe, tentando encontrar a verdadeira porta, o verdadeiro caminho. Correu tanto e tão depressa que já não sabia mais voltar para casa sozinha. Não tinha mapas, não tinha bússolas, não tinha migalhas de pão para alimentar os passarinhos do caminho. Ao menos, ela pensava, estava a salvo da polícia, pois não sabia se até a polícia também estava ao lado dos conspiradores e do mercado clandestino, já não sabia mais nada. Enquanto isso, as vozes não paravam de chamar o seu nome e ela respondia baixinho: o que é, o que vocês querem de mim, o que é, o que é, o que é, meu Deus?
Então, ao parar em uma calçada, Maria Flor viu dois desconhecidos, um com relógio e o outro sem relógio, cruzando-se na grande avenida cheia de prédios. O tempo passava para ambos: nenhum deles conseguiu se esconder. Percebeu que os dois perguntaram-se as horas, foram para as suas casas e simplesmente se esqueceram, com muitas palavras a serem ditas, enforcadas em duas gravatas tão lisas e tão sóbrias que estampadas de solidão. Mas não eram só eles que se esqueceriam um do outro – Maria Flor continuava pensando. Ela também se esqueceria deles porque nenhum – o com relógio ou o sem relógio – fazia parte dessa história. Eles apenas passaram pela cena, como as milhares de pessoas que atravessavam o seu caminho e que, nem por isso, faziam parte da sua vida. Era só aquela multidão que esbarrava e esbarrava em seus ombros. “Em alguns anos, terei os ombros esculpidos pela solidão.” – ela disse baixinho. De algum modo, ela sabia que não veria mais aqueles desconhecidos em primeiro plano e que não saberia mais nada sobre eles – e isso a deixava um pouco melancólica. Sabia que eles estariam em algum outro lugar da cidade, em prédios que, por economia de tempo e de espaço, já adormeciam em pé, minúsculos ao redor do sol, gigantescos ao lado de um formigueiro. Um formigueiro que passava, que girava, que pressa! As pessoas como frescas pinceladas. Maria Flor não distinguia mais a cor dos cabelos, o brilho dos olhos, as faces disformes. Ela estava tonta de tanto rodar e rodar no meio da calçada, mas abruptamente tudo parou. Foi quando alguém gritou o nome de Paulo e um homem respondeu. Então, ela enxergou um rosto, o único rosto que não se desmanchou na tinta que todos os outros formaram, na força centrípeta do seu giro panorâmico. Era Paulo, algum outro Paulo do mundo? Por alguma estranha razão – ou seria mais uma coincidência? – ele não a viu, mas correu os olhos pelas páginas do livro que estava lendo. Sim, seria para ele que Maria Flor entregaria a próxima carta. Dentro da mochila, tinha oito cartas para entregar. Agora, entregaria para aquele que poderia fechar o livro a qualquer momento. Para aquele que poderia jogá-lo sobre a estante e espremê-lo entre os clássicos, ignorando-o por sua constrangedora imaturidade. Para aquele que poderia deixar o livro ali, esquecido e amassado, na recém prosa de suportar os gigantes. Afinal, da distância que existia entre os pensamentos, as pessoas faziam surgir todos os livros – ela continuava pensando. E os livros nada mais eram do que a tentativa apaixonada de aproximar duas mentes assim como o sexo podia fazer com os corpos. Então, ela disse em voz baixa, enquanto se aproximava do moço: “Mas era uma vez um leitor, curioso sobre a história dentro de um livro. Era uma vez um livro, curioso sobre os olhos daquele leitor. Era uma vez a história de um. Era uma vez a história do outro. Mas porque alguém tinha de dar o braço a torcer, o livro rendeu-se e começou o primeiro capítulo. Os livros sempre se rendem: não é à toa que eles capitulam.” – ela continuou murmurando, enquanto se aproximava um pouco mais do moço. Parou diante dele e viu pétalas caindo por toda parte e forrando o chão. Um coelho de colete passou correndo apressado. Então, respirou fundo e, enquanto olhava para as pétalas, pensou que, apesar da sua imobilidade, o planeta continuava girando, e ela não estava de todo parada. Vivos ou mortos, todos continuavam girando ao redor do sol, e girando, girando, lá estava ela, diante de um Paulo desconhecido, destinatário de suas cartas. Finalmente, tirou da bolsa mais uma carta e lhe entregou. Era um moço moreno de olhos e cabelos escuros. Até parecia com o seu Paulo. Devia ter, mais ou menos, uns vinte e nove anos – ela pensou. Viu a bolsa de pano que ele carregava, em cima da mesa, repleta de cadernos e livros e presumiu que ele fosse algum estudante universitário. O moço arregalou os olhos, levantou as sobrancelhas, sem entender, mas Maria Flor apenas lhe disse:
– É para você.
– Não, eu não tenho dinheiro não, moça – ele respondeu apressado.
– Não, eu não estou lhe pedindo dinheiro, eu apenas estou pedindo que você leia esta carta – ela disse um pouco hesitante.
– Para mim? Mas por que eu? O que foi que eu fiz? – ele perguntou, arrastando a cadeira um pouco mais para frente.
– Porque você foi o primeiro desconhecido que estava lendo alguma coisa – ela respondeu insegura. E porque se chama Paulo.
Então, ele a olhou um tanto perplexo. Depois, quando Maria Flor começou a escutar a voz daquele moço, mesmo ele estando de boca fechada, ela começou a pensar que havia outras formas de existir que não o corpo e outras formas de se relacionar que não a pele, e que havia todo um mundo sendo erigido no invisível entre os eles dois, e que isso era tão vasto, tão amplo e tão livre. E acrescentou:
– Se você quiser ler, é claro.
– Tá, tudo bem, muito obrigado – ele respondeu um pouco constrangido.
Então, quando aquele Paulo começou a abrir o envelope, Maria Flor sentiu-se tão envergonhada que disse a ele que precisava ir, andou depressa até o ponto de ônibus e entrou no primeiro ônibus que parou, sem olhar para trás. Antes de se afastar, escutou-o dizer alguma coisa, mas tampouco entendeu. Não sabia para onde estava indo, mas aonde quer que o ônibus a levasse, o sol acompanhava o seu rosto através da janela, feito uma pipa alta, amarrada pela esperança. Então, ela pensou que nem ao menos o sol girava ao redor do planeta, que as coisas não eram o que pareciam ser. O planeta, que era uma poeira no universo, guardava infinitas outras poeiras pousadas no chão, e que essas poeiras eram imensas diante dos seres microscópicos. O que a surpreendia era o tamanho das coisas, elas serem maiores ou menores do que outras e tudo ser em relação. Por que ela concebia o infinito se tão finita ela era? – ela continuava pensando, enquanto se sentia menor do que uma poeira no meio do caminho.
Então, quando viu uma pluma voando por dentro do ônibus, ela até chegou a pensar que o mundo não era só ruim e triste, pois as pequenas notícias não saíam nos grandes jornais. Quando uma pluma flutuava no ar por oito segundos, ou uma menina abraçava o seu melhor amigo, como ela vira pela janela, nenhum jornalista podia escrever a respeito. Só os poetas é que o faziam. E se perguntou se aquele moço chamado Paulo a chamaria de louca ou de poeta, pois não sabia se ele entenderia as suas palavras. Então, guardou a imagem dele na memória para não esquecê-lo, pensando que, talvez, a memória fosse só a memória do pensamento, mas como era o pensamento que via, que escutava, que sentia, com ele, o seu pensamento, ela conseguiria reconstruir o mundo e as outras pessoas. Pensou tudo isso com alguma certeza, mas quando o moço entrou no seu pensamento e soube o que ela estava pensando, foi o dilaceramento. Ela começou a murmurar, um tanto nervosa, para que só ele a escutasse, ninguém do ônibus mais a escutasse, mas ele não parava de lhe falar. Por um momento, tentou lhe dizer: “Tome este pássaro repousando na concha das minhas mãos, tome o meu mundo erigido: é um pássaro que lhe dou”, mas ele continuava lhe perguntando por que ele, por que ele, por que ele, não, eu não tenho dinheiro, não. Então, Maria Flor pensou que aquele moço, ao ler os seus pensamentos, tinha lhe visto nua, e sentiu-se por demais envergonhada. Por isso, apertou a campainha e desceu apressada do ônibus. Aquela intimidade descoberta era, para ela, como se os seus corpos se afligissem e se unissem e se enlaçassem. E aquilo, para ela, era simbolicamente tido como morrer. Lembrou que havia outras ocasiões em que os corpos, mesmo suados e quentes, na agonia do amor, sentiam-se como abandono, como se a intimidade alcançada com os corpos não tivesse lastro no espírito, ou como se a nudez oferecida ao outro deixasse o ser em carne viva. E sentiu-se mais exposta do que de costume. Então, concluiu que ela precisava de ter muito cuidado com as cartas que escrevia e com qualquer outra forma de nudez para que a sua existência não se esbarrasse, não magoasse a existência delicada de alguém. Pensou tudo isso enquanto os carros e os ônibus passavam apressados por ela, ali parada no meio-fio.
Então, ao andar pela calçada, ela viu um homem dormindo no chão ao lado de um cachorro. E, para aquele homem que dormia na rua, ela pensava, o asfalto devia ser uma noite dura e sem estrelas. Por isso, ela se perguntou se era ela ou se era o mundo quem estava louco. Se ela fosse a presidente do mundo, ela pensou, uma loucura daquelas não aconteceria jamais. Não, não era possível que um homem estivesse em abandono pelas ruas de São Paulo e ainda sentisse frio! Isso era demais para um homem só, estar constantemente nascendo, dividindo-se em dois. Nascer era dividir-se em dois, a primeira vez em que ela testemunhara o abismo. E pensou: “se, ao menos, com uma oração eu pudesse me comunicar com aquele que organiza o mundo! Se, ao menos, o mundo tivesse um organizador e nem tudo fosse o caos! Se eu estivesse certa com Deus, e Deus estivesse certo comigo, então, eu teria a certeza de adormecer em suas mãos, e de que o homem e o cachorro também dormiriam.” Mas ela só acreditava em Deus porque, um dia, já fora criança; e as crianças, ela pensava, acreditavam em muitas coisas: no impossível, em fadas e duendes, em amigos imaginários ou na solidão das estrelas. Talvez, o céu fosse apenas isso: um mecanismo de defesa. Seria por demais insuportável pensar que, depois de tudo o que ela passara, imersa em tanto medo, dúvidas e incertezas, a sua vida se acabaria para o nada, para o nunca mais. Ela não estava preparada para se despedir das pessoas que mais amava. Ela não estava preparada para ver um homem dormindo no chão. Ela precisava, então, de pensar em algum tipo de céu, um lugar de paz para onde todos fossem se encontrar novamente. Talvez, isso lhes trouxesse um pouco de alívio. Talvez, o céu fosse apenas isso: a paz de espírito que ela tanto necessitava, um subterfúgio, uma corda que a amparava, a mão no meio do abismo. “Deve ser nessa hora, quando o meu olhar se perde, que eu enxergo a morte; a morte o tempo todo nos rondando, uma fera que se alimenta dos restos de segundos que vamos largando para trás. É a vida quem alimenta a morte até o segundo insustentável. E, agora, eu tenho de ter muito cuidado ao manusear o desconhecido no mundo.” – ela pensou em voz baixa enquanto olhava o homem impassível dormindo ao lado do cão. Estavam tão sujos e tão magros, tão sujos e tão magros, meu Deus. Cheiravam mal. Há muito tempo, não tomavam banho. De algum modo, aquele homem lhe dizia respeito. Dizia respeito à sua humanidade, mas ela não sabia o que fazer com a humanidade de outrem, com a fome, com a sujeira, com a cidade, com a sua loucura, com a loucura do mundo ou de outrem. Nem mesmo com a própria. Sentia muito por ele, era claro, mas seria só isso? Sentir muito? Nada mais ela poderia fazer? Andou mais alguns passos, mas o homem continuava ali, dormindo em trapos remendados de sol. E então, enquanto os carros passavam depressa, a tarde faminta arrancava os sonhos daquele pobre homem com as mãos. Dali a pouco, seria mais um outro dia derrubado pela noite, mas aquele homem quem seria, ela se perguntava, aquele que, um dia, foi menino a dormir no ventre da mãe, e que, agora, estava dormindo tão encolhido, curvado do frio, como o feto que um dia ele foi. Então, ela desabotoou a sua blusa para entregar ao homem, mas seria só isso? – ela pensava. Não poderia lhe dar um abrigo, um abraço, uma carta? Não poderia levá-lo para casa para que ele tomasse banho e se alimentasse e se agasalhasse do frio? Não, não poderia. Paulo jamais aceitaria. Paulo a chamaria de louca porque o normal, o normal mesmo era deixar um homem abandonado dormindo no meio da rua. Por um momento, sentiu o vento gelado, e pensou que o mesmo frio que, um dia, avisou-lhe o que era o mundo, agora lhe lembrava que era vida e arrancava do seu corpo uma revolta, também chamada arrepio. Mas, um dia, ela pensava, aquele homem tinha sido um menino a dormir no ventre da mãe. Não contasse, mãe, não contasse o roxo das unhas que o ar quente da sua boca não era mais capaz de sustar. Mas, agora, ele estava tão encolhido que o frio não haveria de encontrá-lo ali. Era só ele fingir-se de morto – ela pensava – porque os mortos, sem ao menos respirar, enganavam o frio, o vento e a fome. Maria Flor parou no meio calçada, sem saber o que fazer. Poderia lhe entregar a sua blusa e os seus alimentos, mas seria só isso? O mesmo frio que, um dia, avisou-lhe o que era mundo, fazia o homem esconder-se sob os jornais velhos da coluna social, porque todo homem, mal ou bem, já nascia de um abrigo. Ao lado do cachorro, o fundo de uma garrafa brilhava redondo, entre os remendos do sol, simplesmente, porque o calor custava a chegar. A garrafa vazia e o estômago, embriagado de um nada, gargalhava das piadas e quadrinhos e fofocas nas páginas de um jornal, sobre o qual ele se deitava. Mas aquele homem quem seria, ela pensava, aquele que, já crescido, dormia ao lado do seu cachorro, porque, altos e velhos e ossudos, entendiam as palavras que não diziam, com os seus olhos metafóricos, molhados de velhice e fadiga. Pelas ruas e pelas calçadas, as pessoas afastavam-se, desviando-se do homem e do cachorro, como se eles fossem invisíveis. Olhavam as vitrines, as telas do celular, mas não olhavam o homem dormindo no chão. Aquelas pessoas eram anônimas. Eram os desconhecidos para quem ela escrevia cartas? Mas o homem que dormia na rua chama-se Paulo, ela sabia. Todos os homens que dormiam na rua chamavam-se Paulo. Então, deixou ao seu lado uma carta. Então, seria só isso? Aqueles dois transeuntes, por exemplo, quem seriam? – ela se perguntava. Aqueles que, um dia, perguntaram-se as horas, foram para as suas casas e, simplesmente, se esqueceram – se é que podia ser simples ver o único e o infinito do mundo escorrendo: pendurados em gravatas tão sóbrias e lisas que estampadas de solidão. Enquanto isso, a calçada era cor e sombra e trapos. Enquanto isso, uma apatia escorria das belas gravatas – ela continuava pensando. O homem e o cachorro estavam famintos, mas a caneca no chão estava vazia, estendida às centenas de pernas que nunca paravam: centopeia da pressa, na cidade em que os prédios já amanheciam de pé, minúsculos ao redor do sol, gigantescos ao lado de um formigueiro. Então, Maria Flor perguntou-se se era ela ou se era o mundo quem estava louco. Quem era são?Qual Paulo era são? Não, não era uma carta o que aquele Paulo queria. Era pão. Então, ela abriu a sua mochila e lhe entregou o pouco alimento que tinha guardado para a sua viagem. Deixou apenas duas maçãs dentro da mochila. Se ela não saísse de si, se ela não atravessasse a grande avenida do mundo e entregasse os seus alimentos para aquele homem e aquele cachorro, eles continuariam com fome, e isso seria um desastre. Por isso, ela finalmente foi até eles. Ela finalmente saiu de si para entrar no mundo. Colocou os alimentos, a carta e a blusa ao lado do homem e foi embora, esmagada pela impotência, esmagada pelas coisas que tinha em casa. Ela e Paulo conseguiram ajustar-se ao funcionamento do mundo, mas o outro Paulo, que dormia na rua, não conseguira, não. E então: ninguém faria nada? Era tudo o que tinha e era tão pouco. Eles continuariam deitados no chão. Eles continuariam sem um abrigo. De certo, eles continuariam sujos. Ao lado deles, os carros luxuosos passavam, e ela pensou que era tudo tão injusto, meu Deus. Então, naquele instante que nunca mais se dissolvia, o seu dentro não quis mais voltar para casa, ele ficou em algum lugar daquela calçada, lá onde ela existia por fora. Levou a casca de um corpo para se sentar no banco da praça e chorou todos os choros que ainda trazia em si, adiantados. Padecia de um oco, criando a morte por dentro de si. A morte que estava sempre à espreita do nada que se esbarrava até nos seus pensamentos. Então, quando as vozes ficaram muito irascíveis, ela pensou que deveria voltar para casa, deitar-se em sua cama e dormir. E pensou que se tivesse uma arma na cabeceira da sua cama, uma arma carregada, ela descobriria qual a consistência dos seus sonhos. Se os seus sonhos fossem pesados, eles seriam plastas de sangue grudando na parede, mas se os seus sonhos fossem leves, eles seriam penas voando do seu travesseiro. E os seus sonhos seriam, então, reais, materializados de alguma forma. Mas, depois, essas ideias foram aos poucos se desvanecendo, e ela foi ficando viva novamente em seus entornos, viva como a sua mãe lhe entregara ao mundo: imprevista de esperanças.
Andou, andou e andou até se cansar. Virou esquinas, percorreu ruas estreitas e movimentadas, entrou em praças e museus. Parou diante de uma casa que pensou ser a rádio de Aureliano. Sentiu que era ali o encontro, pois pendurada na janela estava uma toalha listrada de vinho. Era ali o encontro. Diria a ele que não a tocasse mais porque era noiva de Paulo, e aquilo não estava certo. Afinal, na outra noite, Paulo a olhara com ternura, Paulo alisara os seus cabelos, Paulo não a chamara de louca, Paulo a abrigara da chuva. Então, olhou ao redor. Era uma casa muito antiga e secreta. Era uma casa que cobrava muito caro pelos vazios deixados por dentro. Ela operava vazios, enxertava silêncios, implantava nenhuns, invertia os amanhãs para nunca mais. Então, ela tocou a campainha sem imaginar o que encontraria, e chamou por Aureliano, sem ouvir o conselho dos pássaros. Como ninguém atendeu, ela caminhou pela rua de pedra, sem escutar o canto dos passos. E, depois, sentou-se no meio-fio, enquanto as rodas e os freios e os carros silenciavam os prenúncios de um pequenino pássaro pousando no fio entre os postes. Mas nada disso ela pôde ver numa manhã tão fria, ou como a cidade tentava estender-lhe a tristeza. A tristeza escondida entre as árvores e as rajadas de vento. A tristeza escondida entre os prédios e os raios de sol – os raios que, de tão leves, acariciavam o rosto de um outro homem deitado no chão. Ela foi até ele e lhe deixou a maçã que guardara na mochila. Seria só isso, meu Deus? Não tinha mais alimentos para entregar. Não tinha sequer esperanças para lhe dizer. Se, ao menos, ela tivesse notado o quanto a natureza acolhia o que as pessoas não queriam mais, ou se ela tivesse parado um instante, um instante que fosse, para ver o mundo cavando ternuras, na fundura dos seus abandonos, ela teria imaginado o que viria depois. Mas nada disso ela pôde ver numa manhã tão fraca, pois ela andara pelas ruas de pedra com os seus olhos cegos de lágrimas: ela inundando as ruas da cidade nas águas de sua tristeza; ela transbordando os seus muros e desmoronando as suas casas; ela afogando as pessoas em borrões de verdes e azuis. E só quando as lágrimas despencaram enfim dos seus olhos, refletindo, em seu brilho cristalino, o mundo inteiro lá fora, ela pôde enxergar o seu futuro vazio, e hesitou. E pensava assim: não era impressionante como um sentimento podia se transformar em água, e ir pingando por uma rua toda feita de pedras? Então, ela pisara em lágrimas, poeiras e pedras, sem se lembrar que as lágrimas também evaporavam e depois viravam nuvens. As nuvens que, muitas vezes, desciam furiosas, castigando as suas certezas, enquanto ela tentasse salvar, no colo do seu vestido, a mais bonita das suas histórias. E, depois, seguiria com um pássaro clandestino aninhado em seus braços, pensando no que lhe daria para comer, se ele não resolvesse fugir: o tempo todo ao seu lado. Então, quando o vento soprou violento, deslocando o lá e o ali, ela pensou que o vento existia tanto nos furacões quanto num sopro sobre as feridas, e que havia tanto vento nos tufões quanto nas palavras de amor. E chamou Aureliano o mais alto que pôde, e chamou, e chamou, e chamou. Mas ele não atendeu. Uma mulher abriu a cortina e olhou pela janela, mas logo a fechou. Cachorros latiram que não, que não, que não, ele não queria atender.
Então, Maria Flor andou alguns metros e se sentou em um banco, ao lado de uma feira. Por horas, esperou que Aureliano aparecesse para que eles pudessem finalmente se abraçar, mas ele não aparecia, não. Por isso, abriu a mochila e pegou uma outra maçã. Não estava com fome, mas obrigou-se a comê-la porque era o fruto de uma árvore e, exceto quando faziam sombra, as árvores nunca podiam se deitar, elas nunca podiam fugir e se recolher para dentro. Mesmo quando o inverno vinha pousar sobre elas, sempre dormiam ao relento, pois tinham em si o triunfo da chuva, da chuva que ela nunca conseguia impedir com a força dos seus pensamentos. A maçã estava um pouco murcha, e Maria Flor pensou que a árvore deveria estar cansada de existir para fora, cansada de equilibrar ninhos, cansada de irromper frutas, tão cansada que ela lhe agradeceu em silêncio pela maçã recebida. Olhou para as árvores do parque e se admirou por elas ainda estarem em pé. Talvez, ela também conseguisse, se ela emprestasse a vida das árvores para alimentar a sua, ou se, mesmo exausta do inverno, ela erguesse os seus braços para abrigar os passarinhos. Se ela abrisse os seus braços ao vento e não se assustasse mais com as pequenas folhas crescendo na palma das mãos, com os novos pássaros surgindo no ninho. Então, enquanto ela comia, ela pensava que, assim como aquela maçã, todas as coisas precisavam de muita paciência para serem feitas. Talvez, ela devesse ir ao psiquiatra, como Paulo queria. Talvez, o psiquiatra tivesse um remédio que bloqueasse o seu corpo da rede de transmissão dos pensamentos. Talvez, os psiquiatras fossem parte da resistência. Talvez, chamassem aquilo de loucura, psicose, depressão, esquizofrenia apenas para não serem perseguidos pelos conspiradores. Talvez, todas aquelas doenças fossem mera fachada contra o mercado clandestino. Mas, talvez, todos os médicos soubessem das experiências secretas. Então, olhou os prédios ao redor. A cidade crescia sempre para cima e todos viviam encaixotados. Ao erguerem os apartamentos, os construtores não conseguiam delimitar o vazio que separava as pessoas, apenas o chão que cabia a cada um e, por isso, o ar ficava, para sempre, como algo partilhado, sem qualquer proprietário possível – ela pensava. Pensou também na possibilidade de subir até um prédio e se jogar. Olhou um pequeno pássaro que voava de uma árvore à outra e pensou que o grande problema de São Paulo é que as pessoas não voavam, elas só usavam o chão. Se elas voassem como os pássaros, o ar seria delimitável, e as pessoas ergueriam vazios umas diante das outras, como aqueles que todos erguiam diante dos seus vizinhos. E também pensou que era por isso, por aquela solidão e melancolia, que ela passava os dias a emagrecer devagar, comendo praticamente o nada: os armários quase vazios. Pensou que, ao invés de morrer e de colocar um ponto final em sua vida, ela estava se desbastando, aumentando o vazio ao seu redor. Olhou a própria cintura e percebeu que estava desaparecendo apenas nas extremidades, trocando alguns centímetros da sua cintura pelo ar. Então, enquanto pensava se voltaria até a casa de Aureliano, reparou em uma pedra no chão, imóvel. Seria um sinal de Aureliano? Para ela não sair dali? O chão estava sempre a consolar uma pedra, a sussurrar-lhe que dali jamais brotariam outras pedras pequeninas, que para ela lhe deram o nome de bruta, de pedra bruta, e aos loucos, de loucos de pedra. Era assim que os meninos da rua a chamavam, mas a pedra, que era imóvel como o silêncio, não se mexia. Ela era inocente nas mãos dos meninos ante os passarinhos. Uma pedra estéril trazia em si o peso de toda uma queda, e por isso ela se agarrava no chão, ela o abraçava. “Deixa-me aqui”, era como se dissesse. E Maria Flor deixou, observando os ônibus que seguiam em direção à rádio. Uma pedra no chão tinha sempre onde não cair e, até em um rio caudaloso, ela escolheria o fundo. Antigamente, Maria Flor deixava, deixava a pedrinha no chão, e nunca a acertava de volta nos meninos da rua porque ela não tinha coragem, porque ela queria sentir como uma pedra que nunca flutuava e também nunca voava. Uma pedra que resistisse à superfície. Uma pedra que nunca fora preciosa e, por isso, nunca fora trocada pelas coisas que os homens inventavam. Uma pedra simples, deixada para contemplar o céu, para repartir o vento em dois. Uma pedra simples, a se abraçar nos limos do chão, a medir forças com o vento, só isso. Só isso mesmo: o seu amor.
Depois, pensou em Aureliano. Então, quando uma rajada de vento forte esvoaçou os seus cabelos, ela agarrou-se às madeiras do banco para o vento não esvoaçá-la também, não levar de si as suas palavras soltas. Ao longe, via as folhas secas e as poeiras voando, e pensou que a poeira era só a vontade que o chão tinha de voar. Não, que ela não se assustasse, pensava consigo, pois os tremores da terra eram só as flores nascendo em alguma parte do mundo. Foi então que Aureliano voltou com as suas carícias, muito leves, muito fundas, subindo sobre as suas pernas. Maria Flor fechou os olhos com força. Ah, como ela queria ser toda labirintos por dentro para que ele se perdesse para sempre, sem mais achar o caminho da vida, sem mais achar o caminho da volta. Ah, como ela queria ter um fundo falso, um esconderijo secreto, uma caverna oculta, encoberta em muitas camadas de sedimentos, subterrânea, para que ele se perdesse dentro de si, sem a chance de qualquer resgate. Então, ele deixou uma palavra proibida em seus ouvidos, mas era em uma língua tão antiga que ela já não a decifrava, ninguém mais a decifrava, e ele acabou por fundar nações abandonadas – ela pensava. Havia desenhos longínquos por dentro de algumas cavernas subterrâneas? – ela se perguntava. Havia nelas o desenho de nuvens iminentes? Todas as suas certezas se desmoronaram quando Aureliano acariciou as suas virilhas e, em carícias imperceptíveis, amou-a à sombra dos seus escombros. Era como se ele acordasse o centro da terra, como se há muitos anos ela estivesse nua, e só um tecido muito fino cobrisse inutilmente o seu corpo. E o seu próprio corpo já fosse transparente para ele. A que abismos ele chegava? – ela se perguntava. A um universo vazio, um universo que ela concebia em si, enquanto ele a buscava em alguma lei que o seu corpo obedecia às cegas. Aureliano murmurou aflito, procurando aflito os seus ouvidos: “Nós não podemos, Maria Flor, não, nós não podemos.” Às vezes, os seus pensamentos eram tão altos como a solidão lá fora, mas ela se cobria de teorias como as crianças no inverno a desembrulhar as blusas de frio – ela pensava. Era como se ela tivesse esquecido a sua essência em algum canto escondido do corpo, e ele a procurasse não só com palavras, mas com as mãos e os lábios e os seus olhos fechados. As suas carícias varrendo a solidão do seu ventre. Um trauma às voltas do seu pescoço. Uma lembrança no recôndito do seu colo. Então, ela nunca mais tinha vontade de morrer porque a vida era um sussurro do tempo passando por entre as folhas das árvores, e ela se balançava ao vento, sem desconfiar que a queda era qualquer coisa de despedida. Ela caía no meio da vida como as poças engoliam a sua imagem no chão. Quando as raízes de uma árvore abraçavam um torrão de terra, quando a água se infiltrava entre os seus braços e o sol lhe chamava do centro desse universo e a planta respondia, e a planta se erguia, e toda a vida se preparava, úmida da continuação do mundo, às vezes, ela perdia a razão, sim, ela perdia, e ia para um lugar de clausura entre os braços, de loucura entre as mãos. Era assim que Aureliano a amava, afundando os dedos imperceptíveis em seus cabelos tão negros, como se entre eles escorressem as areias do tempo – ela pensava. Depois, qualquer coisa que ela escrevesse seria um poema de amor, impronunciável. Mas ela não sabia que música era aquela em seus ouvidos. Uma música tão antiga, de civilizações passadas, que escapava sorrateira ao ar, quando era descoberta em antigas escavações em seu peito. Jaziam no fundo da terra as melodias do seu silêncio. Havia amor guardado no fundo dos seus braços? – ela se perguntava. Havia silêncios enterrados no coração da terra? Não, ela não sabia. Ela só sabia que também tinha medo. Tinha medo de abrir um espaço no planeta para existir duplamente. Tinha medo de pedir licença às plantas e ver as folhagens crescendo por entre os dedos das suas mãos. Tinha medo de ser abrigo ao amor dos pássaros porque não-ser era também ocupar um espaço. E o espaço era tão imenso quanto o vazio de que não eram feitos. Então, se ela tivesse fechado ainda mais os seus olhos e protegido a sua cabeça com os braços para quando o amor chegasse, violento do perfume sobre a pele, se ela tivesse encolhido o seu corpo, quem sabe, ela não teria precipitado tudo, mas ela também tinha medo de ser vista pelo olho estrangeiro antes que ele avançasse sobre a vida, como se ela estivesse parada no tempo e o futuro viesse colidir contra o seu corpo presente. De algum modo, ela tinha medo da loucura. E, naquele momento, ela estava enlouquecendo. Por isso, era difícil para ela avançar com a memória de todos os passos que ainda não tinha dado, com a possibilidade de imensos buracos entre eles – ela continuava pensando. Isso a levava para todos os chãos sobre os quais ela nunca esteve. Mas, agora, ela tinha mais medo do amor que a amortecia – ela pensava. Não, Paulo não entenderia. Nem ela estava entendendo o que acontecia. Nem ela mesma entendia os seus pensamentos: “Talvez, isso seja mesmo a loucura” – ela disse a si mesma. Durante muito tempo, olhou as pombas que ciscavam no chão, sem nunca feri-las com os seus olhos famintos. Famintos de quê? – ela se perguntava. Famintos de eternidade. Mas a eternidade lhes escapava a todo instante em que o calor arrefecia. E o peso da sua culpa tornava-se muito maior do que o seu desejo. Lentamente, ela enterrava a mão uma na outra para puxar raízes e flores adormecidas do inverno. Ela era fecunda como um torrão de terra à beira da água, à espera de alguns lábios distraídos. Um só pássaro a esperava, violento da sua solidão. Então, ela deixou o tempo passar ao seu lado para que escapassem outros pássaros do fundo das suas mãos inseguras. Por dentro delas, sobrou-lhe um pequeno pássaro que não soube voar para longe, que preferiu voar para o dentro do dentro e pousar na sua linha da vida. Era um pássaro solitário, que voava com as asas paradas no tempo. Era um pássaro de se lembrar, que só voava para o infinito quando ela olhava para longe. Era um pássaro que voava para trás como os pássaros da sua infância. Um pássaro que escapou afoito, estilhaçando o tempo. Quando uma criança passou correndo à frente do banco, todos os pássaros voaram e a criança riu, muito entusiamada. Então, Maria Flor engoliu o tempo, como se a sua loucura fosse partilhada. A criança também enxergava os seus pássaros? Ou os pássaros existiam de verdade? Cacos invisíveis caíram aos seus pés descalços, ela quase os cortou dos caminhos escolhidos. Então, ela olhou os olhos culpados dos pássaros, para que eles pudessem novamente enxergar o caminho solitário da sua existência. Ela fechava os seus como se fecham as cortinas depois do ato, e o público se levanta para outros mundos. Era como se um pequeno pássaro erradicasse dos seus olhos a sua cegueira. Não era só mais um caminho de ir, era um outro, de ir e de voltar, quando ela se achegava ainda mais fundo do que quando usava as palavras. A que abismos ela chegava? Olhou ao redor, os prédios, os automóveis, as pessoas que corriam apressadas. O mundo eram seis lobos correndo ao redor de um pássaro com as asas feridas. O mundo era iminente, e ela não sabia mais o que fazer. Tudo era tão confuso, tão confuso, meu Deus.
Quando o pássaro sumiu, ela abriu a mochila e pegou o seu celular, para ver se Aureliano publicara mais alguma coisa nas redes sociais, mas ele estava descarregado. A tela do seu celular era o quadrado mundo que impedia o navegante de ir além-mar. Fosse redonda, ela poderia entrelaçar os seus dedos nos deles ou, quem sabe, buscar o horizonte onde divisavam os seus olhos. Mas nem os seus olhos a fariam alcançar, pois como as vidas, escondidas, que amanheciam e entardeciam além do olhar, um abraço não se enxergava, e os sonhos, um olhar não contava. Ao mundo que ultrapassava o além-mar dos seus olhos: abraçar era preciso. Então, levantou-se do banco e decidiu que seguiria até a casa de Aureliano. Para dentro, era um lugar em que ele nunca mais respondia. Era um lugar sem portas para entrar, e ela ali, sem saber atravessar as paredes do seu passado. Afinal, quantos amanhãs uma pessoa que nunca amanhece é capaz de suportar? Qual o peso das manhãs quando elas eram latentes? Ela não sabia responder, por mais que fosse a pessoa mais importante a pensar dentro de sua própria cabeça. E Aureliano, Aureliano não existia mais para fora. Já era tarde, ele já tinha entrado para si mesmo, com mil pedidos de desculpas. Então, Maria Flor percebeu que estava há vários minutos olhando o nada. E o nada acontecia. E o nada respondia. E o nada florescia em amarelos invisíveis. Aquelas flores que não existiam, mas que ela estava vendo diante de si, deviam ter sido plantadas por algumas sementes do nada. Se, ao menos, ela soubesse a dimensão das coisas que ainda não existiam e que estavam, naquele exato momento, amontoadas ao seu redor, ela não conseguiria dar sequer um passo adiante. Então, ela pensou que Deus criara o mundo pelo mesmo motivo: sufocado por um vazio suplicante. Ou então, Deus criara os outros homens por não suportar as histórias em primeira pessoa. Mas o narrador tinha ido embora e aquela pessoa era tudo o que lhe sobrara. Então, continuou por dentro de si, esperando Aureliano chegar, mas Aureliano não chegava, não.
De repente, começou a chover, uma chuva estranha e espaçada, e ela se desculpou às vozes pela tarde perfurada. A chuva não principiava da terra, a chuva não se levantava do chão, estava tudo como sempre fora: os seus dias eram parados como um vento cortado ao meio. Não, ela não subiria no prédio para se jogar. Ela viera do nada – continuava pensando – mas desaparecer do mundo tinha o peso de todos os dias vividos. Não, desaparecer do mundo tinha o peso da memória. Não, desaparecer do mundo tinha o peso do próprio mundo acumulado aos seus olhos. Por isso, quanto mais a morte se aproximava, mais ela existia à beira. Se ela não tivesse memória, morrer talvez fosse tão natural quanto nascer, mas, ao contrário de chorar, nascendo, ela morreria rindo, rindo uma alta gargalhada até voltar ao silêncio no colo da terra: da terra que também era mãe.
Quando a chuvinha parou, Maria Flor caminhou até a rua paralela e entrou numa feira local, atraída pelo cheiro das frutas e dos vegetais. Percebeu que estava com fome. Então, comprou uma maçã, comeu-a e jogou os caroços na terra de um canteiro. Pensou que os caroços caíam como os bailarinos não sabiam, e que ela devia ser a mãe de muitas árvores, pois infinitas coisas aconteciam quando ela se retirava. Dali a algumas semanas, quando alguém passasse por ali, caminharia com os seus passos de pés gigantescos até se esquecer, para sempre, daquele caroço caído no chão. Ela mesma poderia se sentar na sua escrivaninha e recomeçar o seu trabalho, sem sequer se lembrar que a terra continuaria o dela. Ela continuaria a sua vida como se não fosse a culpada por tantas árvores de maçã. Ela passaria por elas como se elas sempre estivessem ali, talvez até pisando e esmagando os brotos de outrem. Olhou o caroço novamente. Para ela, era apenas a fotografia de um caroço jogado no meio da terra, visto por um gigante velho de vestido roto. Mas se, um dia, aquele caroço brotasse, se ele brotasse, ela seria apenas um tronco, envelhecido e ingrato, descansando no meio da sombra. Ah, ela gostava tanto de andar pelas ruas de Santo André e pelas ruas de são tão lindas. Ela gostava das cidades em terceira pessoa do plural, mas iria se mudar para a cidade de Somos Paulo, onde todos tinham o mesmo nome e todos se diziam bom dia. Ela iria, sim. Era só preciso esperar Aureliano chegar. Talvez, ele já estivesse lá.
“Olha só aquele menino” – ela disse em voz baixa, olhando um garoto que andava perto de um cachorro. Ele vestia uma calça comprida, um olhar emburrado e trazia uma maldade no peito, como um broche de flores feridas e pétalas não cicatrizadas. Maria Flor lembrou-se que a sua avó dissera, um dia, que o medo guardado fora da geladeira apodrecia em maldade de medo. A maldade de medo era aquela que ia se espalhando pelo corpo de uma pessoa, sem que ela percebesse, e fazia com que ela se afastasse das outras pessoas. Longe, ela não conseguia mais entender o coração das pessoas, mas o seu coração continuava numa bondade que ninguém mais entendia e, então, elas chamavam aquilo de maldade. Assim era a maldade no coração daquele menino – Maria Flor pensava. Mas ele tentava ser bom, a sua maneira. Num instante, por exemplo, ele ficou parado no meio da rua, olhando aquele cachorro abandonado. Os olhos fundos daquele cachorro. Aquele cachorro sabia enxergar no fundo do coração das pessoas. Então, o menino virou-se para voltar para casa. O cachorro foi atrás. O menino parou. O cachorro parou, sentou-se e inclinou a cabeça. O menino voltou a andar. O cachorro acompanhou. Quando o menino virou-se para trás, chutou a cara do cachorro, para que o cachorro não esperasse o amor que ele não podia dar. Maria Flor deu um grito de susto e olhou o menino, que olhou de volta para ela. Então, percebeu que o menino tinha olhos de esperanças. As pessoas más – ela pensava – eram as que mais tinham esperanças no mundo. Só quem reconhecia a própria maldade sabia que um travesseiro era incapaz de abraços. Quando o menino crescer e apanhar do ladrão – ela continuava pensando – ele vai erguer os olhos machucados e dizer: “Agora você pode me matar, agora você pode chutar a minha cara, mas uma coisa eu sei, eu sei que você não era assim, eu sei que você era só um menino abraçado às pernas da sua mãe.” Então, o ladrão vai engolir dois goles de raiva e saudade, talvez de um tempo que não era oco de mãe, talvez dos sonhos de futebol, ele agora um homem chutando as pedras, sozinho no gramado, a mãe com vergonha dele. Mas só naquela hora, olhando a maldade no meio da rua, Maria Flor enxergou os seus olhos refletidos no vidro dos óculos. O ladrão não estava sozinho. O menino não estava sozinho. Paulo não estava sozinho. O seu pai não estava sozinho. Ela não estava sozinha. Em breve, a noite seria uma coreografia de condenados, dançando e rolando na cama, com o travesseiro incapaz de abraços. Então, a maldade era isso? – ela se perguntava. A maldade era aquele que chorava, sozinho, a sua mão cheia de espinhos? Se a maldade fosse isso, aquele desamparo e aquela solidão, aquele medo que. O ladrão acertou o seu primeiro golpe – Maria Flor enxergou. O soco deslizou sobre a boca de Paulo, em câmera lenta, enquanto gotas de sangue flutuavam no ar. Os antebraços tentaram forjar as verdades, na frente do rosto, mas o ladrão atingiu o estômago. O corpo de Paulo encurvou-se para a frente, abraçando o vazio de um desamparo. Paulo ergueu os olhos machucados e disse: “Agora você pode me matar, agora você pode chutar a minha cara, mas uma coisa eu sei, eu sei que você não era assim, eu sei que você era só um menino, abraçado às pernas da sua mãe.” O ladrão engoliu dois goles de raiva e saudade, talvez de um tempo que não era oco de mãe, talvez dos sonhos de futebol, ele um homem chutando as pedras, sozinho no gramado, a mãe com vergonha dele. E só naquela hora, olhando a maldade no meio da rua, Maria Flor enxergou os seus olhos refletidos na lente dos óculos. O ladrão não estava sozinho. O menino não estava sozinho. O seu pai não estava sozinho. Ela não estava sozinha. Paulo não estava sozinho. No meio da rua, Paulo e os violentos, Paulo e os condenados, Paulo e os ignorantes de amor. Estavam todos deitados no chão, encolhidos e ajoelhados, como sementes de erva daninha, incapazes de brotar. No meio da praça, uma árvore que crescia para cima enquanto uma rua se deitava. Havia a página de um livro sendo pisada no meio da rua, enquanto um jornal tentava voar, pendurando-se no vento. O jornal pousava em triângulo sobre a terra, do mesmo jeito que Paulo tentava levantar o corpo, esmurrado pelo ladrão. Depois de um dia inteiro enrolando as bananas na feira, é claro que o jornal acreditaria no homem que dormia na rua, dizendo que o asfalto era só uma noite dura e sem estrelas. O dia dormindo em trapos remendados de sol, enquanto a tarde faminta arrancava os sonhos com as mãos. Mais outro dia derrubado pela noite e aquele homem quem seria – Maria Flor pensava. Aquele, que um dia foi menino a dormir no ventre da mãe e, naquela hora, dormia na rua, curvado de frio, na posição do feto que um dia foi. E, agora, estava tão encolhido que o vento não haveria de encontrá-lo ali. Era só fingir-se de morto, porque os mortos, sem ao menos respirar, enganavam o frio, o vento e a fome. As bananas da feira sendo enroladas pelas histórias de Paulo. Um cachorro expulsando pulgas sobre as histórias de Paulo. O estômago do cachorro gargalhando sob as histórias de Paulo, e Maria Flor acariciando o jornal. Abriu-o e leu-o. Em algum lugar do mundo, um menino levantava um aviãozinho porque não sabia que o ódio explodia em bombas, chamas de fogo num vermelho voar. “Como os pássaros vão entender?” – ela se perguntava baixinho. Como os pássaros vão suportar voar outra vez? O caraço no meio da feira não via a flor sufocada nas pedras. E a flor não sabia que da terra também o ódio explodia em campos minados, onde menos se esperava, onde menos se pisava. “Como as sementes vão entender?” – ela se perguntava. “Como as sementes vão suportar brotar outra vez?” Em algum lugar do mundo, o soldado pegou a arma lentamente. Segurou-a entre as mãos e abriu os olhos, na esperança de que fosse um girassol; mas sementes ao reverso plantavam a morte no peito do outro e, por isso, ele calou. O inimigo caiu no chão e levantou a mão com os dedos abertos. Um pedaço de braço tentando brotar do chão estéril e murchando em seguida, com os últimos raios de vida. Eles, completamente estranhos, já eram inimigos. O girassol apontado para o céu. Da boca. E foi então que dois meninos, de cabelos reluzentes, entraram correndo pelos campos concentrados de flores. Duas armas de plástico, compradas na feira, explodiam em tiros ao som da bochecha e eles se arrastavam pelo chão. Escondido atrás da barraca de peixes mortos, o menino pegou a arma lentamente. Segurou-a entre as mãos e abriu os olhos, na esperança de que fosse de verdade. Mas era. “Agora você pode me matar”, disse o menino crescido, “agora você pode atirar na minha cara, mas uma coisa eu sei, eu sei que você não era assim, eu sei que você era só um menino, abraçado às pernas da sua mãe.” A mãe com os olhos de fúria, pétalas enfeitando o seu cabelo, pétalas caindo por toda parte, até que a mãe precise de suas mãos para costurar a manta que vai aquecer o menino. Ela cobriu o menino até o pescoço e beijou a sua face. Acariciou a sua barriga, esperando o menino chegar. A sua mãe como um anjo brilhando entre as pétalas que curavam o rosto ferido do menino. O menino entrelaçou as mãos às mãos de sua mãe. Eles precisavam juntos brincar de passa-anel, rindo até a brincadeira acabar. Ele, que nascera direto do coração da sua mãe, agora jazia sobre a terra, em companhia de um caroço de maçã. Aquela era a cidade de Somos Paulo, onde todos tinham o mesmo nome e todos se diziam bom dia, Somos Paulo, Somos Paulo, meu Deus.
Então, Maria Flor saiu correndo por entre os carros, que buzinavam sem parar. Não, ela não queria morrer, mas estava no escuro, avançando no imprevisto do mundo. E o imprevisto se movia a uma grande velocidade. Os seus olhos não freavam as coisas, mas no escuro qualquer coisa poderia lhe atingir, e ela só saberia depois que já fosse atingida. Fechar os seus olhos, no meio da avenida, era despejar a escuridão para dentro de si, e era preciso coragem para engolir o universo com os seus olhos escuros. No escuro, ela tinha medo de avançar, por não saber se havia poços no chão. Era preciso atirar uma pedra no fundo do poço para antever a sua fundura – ela pensava. E só então atravessar. Por isso, ela dizia em murmúrios, que um recém-nascido chorava como um cego que caísse ao poço fundo do mundo. As mãos da parteira a ampararam no abismo – ela pensava. Então, ela tinha nascido, mas agora ainda estava presa a um cordão umbilical, o seu umbigo era o seu centro, era por ali que ela se despedia lentamente da sua mãe. Quando a sua mãe morresse, haveria um buraco bem no centro de si. Um buraco irreparável, ó meu deus. Ela não queria nem pensar. O que ela iria fazer sem a sua mãe? Para onde ela iria pensar? Quem lhe diria que as flores de plástico não existiam ou que isso ou aquilo não acontecera de fato? Quem lhe diria que era preciso enfrentar? Quem a lembraria disso, que ela tanto esquecia? Era preciso enfrentar. Era preciso enfrentar os carros que passavam depressa, buzinando em seus ouvidos. Era preciso enfrentar. Era preciso sair do meio da rua. Mas Paulo e os violentos. Paulo e os ignorantes de amor, como ervas daninhas incapazes de brotar. Os motoristas que gritavam para que ela saísse da rua. Todos os Paulos que gritavam em seus ouvidos. Todo mundo que gritava e gritava e gritava, meu Deus. Era preciso enfrentar. Tudo era tão confuso. Como ela faria sem a sua mãe? A primeira vez em que lidara com a escuridão fora no ventre da sua mãe. Pássaros esvoaçando por toda parte. Pétalas caindo do céu. O primeiro instante em que ela pensara em si mesma, ela já estava no escuro. E tudo estava tão escuro, tão escuro, tão escuro, meu Deus. Aquela era cidade de Somos Paulo, onde todos tinham o mesmo nome e todos se abraçavam e diziam bom dia.
Quando Maria Flor acordou, abriu os olhos lentamente, tentando reconhecer o ambiente ao redor: estava na cama de um hospital. A luz natural entrava por uma janela grande, através de uma persiana, e listras de sombra se projetavam sobre a parede. Tudo era pintado de verde-claro e bege, e estava muito limpo, organizado. Ao lado da cama, uma mesa alta, com um frasco de álcool em gel e o controle remoto da televisão. Então, as últimas cenas da rua passaram pela sua mente: os carros em alta velocidade, as pessoas lhe chamando, tudo ficando escuro, e ela sem poder entender. Ergueu-se um pouco na cama. Estava coberta por lençóis muito brancos, mas mexeu a ponta dos pés para certificar-se de que estava inteira. Nada lhe doía. Nos braços, nenhum ferimento. Dobrou os joelhos, afastou o lençol, ergueu a camisola, mas não viu ferimento algum, cicatriz nenhuma. Pensou em chamar alguém, mas estava esmagada pelo ímpeto de viver, e preferiu ficar em silêncio e se acomodar ao silêncio do hospital.
De repente, lembrou-se do que uma senhora lhe disse no meio da rua, enquanto tentava conter os seus braços, ela deitada no chão. “Os seus miolos não andam nada bem, menina.” Naquele momento, Maria Flor viu pétalas caindo por toda parte. No peito daquela senhora, ela viu uma rosa murchando em botão. Aos poucos, as pessoas se afastando dela, ou ela se afastando das pessoas, sem saber se o que acontecia no mundo era culpa sua. A realidade que lhe escapava dos olhos, talvez? E se cada olho visse algo diferente? E se as pessoas não enxergassem as mesmas coisas, assim, como elas também não pensavam as mesmas coisas? Às vezes, o seu olho abria e fechava. E se as coisas também se abrissem e se fechassem? E se, quando elas se fechassem, ela não enxergasse mais nada, e fosse cega, mesmo estando de olhos abertos? E se a própria realidade fosse uma grande ilusão? E se o mundo tivesse segredos desconhecidos pelas pessoas? E se ela não estivesse louca? E se ela tivesse finalmente entrado nos segredos do mundo? Afinal, quando ela era criança e alguém lhe dizia que ela era feita à imagem e semelhança de Deus, ela sentia uma certa desesperança, uma falta de fé, como se então Deus fosse fraco, Deus não lutasse, Deus nunca ultrapassasse os limites, Deus apanhasse de todos os meninos da rua e nunca revidasse, e Deus só chorasse, só chorasse. Então, ao se lembrar da sua infância, ela cobriu a cabeça e ficou deitada, bem quietinha, percorrendo os dedos por dentro do lençol, sentindo as lágrimas rolando nas têmporas feito estrelas cadentes. Não era só tristeza e vergonha o que ela estava sentindo. Eram os seus sonhos de menina que nasciam de novo nos olhos e iam adormecer nos ouvidos, como se os sonhos saíssem e voltassem, fizessem a volta no rosto, mas não conseguissem escapar de si mesma.
Então, ela descobriu um pouco a cabeça e olhou pela fresta do lençol. Percebeu que, numa outra parede, havia um relógio, mas não sabia há quanto tempo estava ali. Não entendia por que as linhas daquele botão na parede giravam e giravam e nunca faziam pontinhos, mesmo chamando ponteiros. Não entendia muitas coisas. Não entendia os girassóis. Não entendia um homem abandonado no meio da rua. Não entendia o que acontecera. Lembrou-se do relógio de reverter o tempo que não conseguira entregar a Aureliano e suspirou fundo, sentindo o aroma suave do desinfetante se espalhando pelo quarto. Sem que o seu relógio funcionasse, nunca mais poderia ser a criança que fora, nunca mais poderia ser esta e esta e esta, porque a vida era sempre iminente, a vida só lhe jogava para frente. Entre o seu nascimento e a sua morte havia sempre uma criança intransponível. E isso era tudo.
Então, lembrou-se das pessoas gritando na rua, tentando lhe conter, quando caiu no chão. Lembrou-se dos motoristas lhe xingando antes de cair, mas não sentia raiva alguma de ninguém. No mundo, havia ruas e, nas ruas, carros que passavam a toda velocidade. Por mais que os seus pensamentos fossem velozes, ela deveria ficar na calçada, assim é que era. Ela sabia disso, mas ali, no meio da rua, ela se esquecera pelo ímpeto de voar com os pássaros. De algum modo, sabia que, no calor do fogo, era que se moldava um vidro; mas quando a peça esfriava, o que se via era um pote fundo de tristezas. Assim era a raiva que sentira.
De repente, quando ela ouviu um cachorro latir no meio da rua, através da janela do hospital, ela quis sair dali e simplesmente voltar para casa, trocar os lençóis da sua cama, colocar toda a roupa na máquina para lavar, e depois estendê-las, à procura do sol, à procura da luz. Sabia que existia o sol para que a noite pudesse atravessar o mundo, pois o sol nunca faltava ao dia de amanhã. E ela precisava de lavar a roupa, meu deus. Não, não estava com raiva de ninguém, nem de Aureliano, nem de Paulo, nem do menino que chutara o cachorro, nem das vozes.
Precisava apenas de voltar para casa e lavar a roupa suja, apenas isso. Ela precisava de encontrar alguma força para existir, já não tinha mais roupa limpa para usar, elas estavam todas impregnadas dos dias que se foram, e ela ali, deitada, usando uma camisola que alguém lhe dera. Quem sabe, o médico voltasse. Então, ela diria a ele que precisava de sair dali, ir para casa e lavar as suas roupas, precisava de chamar alguém, meu Deus. E, assim, quando estivesse colocando as roupas no varal, diria apenas: “Não, não te preocupa, vestido; amanhã, quando o sol quente voltar ao céu e todas as nuvens te quiserem de volta, os dois pregadores, no varal, vão te salvar.” E isso seria tudo. Mas não podia sair dali. De algum modo, sabia que ninguém podia sair de um hospital. Os loucos podiam, mas ela sempre tentava disfarçar a sua loucura. Tinha medo da discórdia. Eram as cores de um hospital. Eram os cheiros de um hospital. Eram utensílios e aparelhos de um hospital. Decerto, haveria médicos e enfermeiros, mas ainda não tinha visto nenhum, e tinha vergonha de lhes chamar porque se abanara loucamente no meio da rua, no meio dos carros, no meio dos pássaros. Então, esperou o desconhecido.
Em si, ela tinha certeza, além dos cinco que possuía, estava lhe faltando algum outro sentido que ela jamais conhecera. Pelo fato de não sabê-lo, ela achava que ele não lhe fazia falta, mas era só porque não o conhecia de fato. O sentido inexistente devia lhe fazer muita falta em algum outro mundo que ela jamais vivera, pois havia, nas vastas possibilidades da sua vida uma falta enorme que ela sequer sentia. De algum modo, sabia que a vida era o resultado de tudo o que lhe fora possível ser; mas ela poderia ser uma outra. A diferença entre as duas, ela não tinha como medir com o braço. E só não sabia como essa outra Maria Flor seria. Não conseguia imaginá-la a tempo porque o que existia era o que fazia o limite da sua imaginação. Tudo o que não existia se fazia ausente, e isso comprometia a sua compreensão do mundo. Não tinha a consciência do visível, por isso, o que ela não via, só encontrava nos idos do sonho. Então, perguntara-se se, ali no hospital, alguém avançara a sua cabeça, avançara, avançara, até ela prever o futuro, para ver se ela entendia adiante, ou além. Mas não tinha a quem perguntar.
Então, para se situar no agora, no agora do hospital, ela olhou para trás, tentando ver a sua infância, mas tudo o que vira fora os aparelhos na cabeceira da cama. Oxigênio, um monitor de alguma coisa e uma lâmpada acesa. Por que ela olhava tanto para trás? – ela se perguntava. Ela tinha olhos que ficaram no meio do caminho, então, percorrera o caminho sem eles. Por isso, ela avançava cegamente, sem saber o que lhe aconteceria dali por diante, depois que saísse dali. Onde estaria Paulo? Estaria bravo com ela? Estaria sem paciência? Ah, se isso não era a verdade escondida do mundo, então, ela ainda estava enlouquecendo. Ou era bem o contrário: ela estava vendo a realidade tão sem filtros que os seus olhos estavam prontos de abismos. Os seus olhos. Tinha medo de que Paulo caísse para dentro deles, porque eles eram tão escuros quanto um buraco negro, e ali estavam sozinhos no universo. Um dia, os seus olhos iriam morrer e se fechar, e ali, ela não tinha mais os olhos de Paulo para guiá-la, e sentiu-se comprimir por dentro.
De alguma forma, o tempo passou, pois quando Maria Flor abriu os olhos novamente, Paulo estava em pé, ao lado da cama, com um sorriso no rosto. Maria Flor sorriu de volta, procurando nele qualquer indício de aborrecimento, mas ele apenas sorria que sim, que o sol não faltara ao dia de amanhã.
– Flor, como você está?
– O que aconteceu, Paulo? Por que eu estou aqui?
– Você passou mal no meio da rua, mas está tudo bem. Você foi socorrida pelas pessoas pessoas que passavam na rua, e elas descobriram o nosso endereço por causa das cartas que você escreveu para mim…
Maria Flor não ousou dizer que as cartas não eram para ele, que eram para todos os Paulos que existiam no mundo, e apenas sorriu que sim. Tentou se se lembrar de tudo o que escrevera naquelas cartas, e que agora Paulo sabia. Desviou os olhos um pouco constrangida, procurando pela sua mochila. Viu-a sobre uma poltrona no canto do quarto.
Então, uma enfermeira entrou e, vendo-a acordada, apresentou-se muito sorridente.
– Que bom que você acordou, Maria Flor. Estávamos ansiosas aqui para conversar com você. – ela lhe disse enquanto colocava um medicamento sobre a mesinha posta ao lado da cama. – Além disso, está bem na hora de você tomar o seu remédio.
Maria Flor olhou para Paulo e, vendo que ele sorria para a enfermeira, acalmou-se um pouco mais. Olhava de um para o outro tentando vislumbrar os indícios das palavras que nunca diziam. Tentava auscultar os olhos da enfermeira para saber de que lado ela estava.
Quando a enfermeira estendeu-lhe um comprimido num copinho com água, Maria Flor apertou os lábios e pediu que ela se aproximasse:
– Olha, não conte nada para ele, mas eu não posso tomá-lo.
– Por que não? – a enfermeira perguntou aos sussurros.
– Bem, é uma longa história…
– Que história? Pode me contar…
– Bem, é uma longa história sobre o mercado clandestino e os conspiradores, acho que você não iria entender…
A enfermeira sorriu-lhe com ternura e continuou, entre sussuros.
– Ah, já sei do que se trata, mas é justamente o contrário. Esses comprimidos blindam o corpo contra as invasões dos conspiradores…
– Sabe? Mas como você sabe?
– Já estou acostumada, meu amor. A médica psiquiatra está do seu lado.
Paulo nunca tinha conversado daquela maneira, legitimando os seus temores. E Maria Flor pensou que as cartas que a enfermeira tinha lido as suas cartas que ela escrevera, e que por isso sabia de tudo. Então, Maria Flor olhou o comprimido no copinho durante alguns segundos. Olhou para o rosto meigo da enfermeira. Olhou para a janela e para o sol que fazia lá fora. Olhou para o Paulo, sorrindo que sim. Depois, pegou o copo com água e esperou. A enfermeira tinha olhos para a bondade. Então, era isso mesmo. Os médicos psiquiatras faziam parte da resistência. Talvez, eles fossem recrutados pelo exército brasileiro ou pela inteligência secreta e fossem agentes federais, ou qualquer coisa assim. Antes de tomar os comprimidos, contudo, perguntou:
– Qual o nome da médica?
– Dra. Aline Guerra – a enfermeira sorriu.
Então, Maria Flor sorriu com imensa satisfação porque tudo fazia sentido. O nome da médica era também um código secreto. Aline Guerra. A linha. A guerra contra as vozes que chamavam e chamavam em seus ouvidos. Aline Guerra. Aline Guerra. Estava claro. Então, virou o antipsicótico com um pouco de água e agradeceu. Fechou os olhos e suspirou fundo. Todos suspiraram fundo, também.
Paulo segurou as suas mãos, e Maria Flor admirou-se como ele se dispunha a ir até o hospital e a se sentar na fronteira entre eles dois, sem nunca ultrapassar o não, o não ainda, o ainda não. Parecia até um ser que, no cerne do mundo, pairava inteiro, envolto em tanto invisível que era quase barulho, e tantos silêncios que quase cegava. Mesmo assim, Maria Flor não entendia por que, nele, tudo era tão perto. Ele não atravessava grandes distâncias para estar ao seu lado. Ele estava sempre a um passo de onde estava realmente, enquanto ela, por mais que tentasse, não conseguia criar intimidade entre um mundo e o outro, entre o seu mundo e o dele. Mas era isso um tão resquício, um tão ao redor, que ela ensaiou, o instante inteiro, com seu gesto contraído, e só depois – vitorioso – de traduzir o seu silêncio impermeável. O que ela poderia lhe dizer? Que havia chuvas esquecidas no quintal, chuvas que ninguém recolheu, chuvas que o sol não levara de volta ao céu, chuvas tão velhas quanto aquelas que ela derramava dos olhos enquanto cavava poços intransponíveis entre eles dois. De qualquer forma, ao lado de Paulo, ela se despedia de trovões e de nuvens caindo no chão, fosse lá o que isso quisesse dizer. Lembrou-se de que, por muitas vezes, ela lhe dera uma intimação de estranho, não lhe convidara ao seu cerne porque ela tinha os braços fracos para lutar sozinha diante do mundo. E era preciso lutar contra as pequenas alegrias que se anunciavam como chuvas, como cavernas umedecidas a rebentar os musgos frágeis da vida. Era preciso lutar – ele lhe dizia naquele instante, sem lhe dizer qualquer palavra. E ela lutaria, lutaria, sim.
Mais tarde, enquanto ele cochilava no sofá, Maria Flor lembrou-se de quando os dois eram crianças. Muitas vezes, ela abrira a mochila dele com os segredos escondidos que eles partilhavam: as cartilhas de alfabetização que eles acharam na rua. Ah, se eles conseguissem juntar todas aquelas letras, eles pensavam, eles poderiam ler todos os livros que quisessem, sem depender de ninguém. Então, eles perguntavam aos adultos como era este som e aquele, e aos poucos iam formando um padrão com o alfabeto. E quando eles finalmente desvendaram o segredo de todos os livros, eles passavam o dia inteiro com a menina que tinha vindo de uma história, que tinha um vestido assim e assim, e viajou por dentro de uma abóbora, ou o príncipe que viajava de um planeta ao outro com a ajuda de pássaros, e, outras vezes, eles pensavam muito em Dorothy. Não, ela nunca podia chorar sobre o homem de lata para não enferrujá-lo de dor. Não, ela não podia: era preciso enfrentar. E um livro para sempre entre eles dois. Juntos, eles aprenderam a ler. Era justo que Paulo abrisse a sua mochila e lesse as suas cartas. Quando acordou, ele lhe disse:
– Flor, eu preciso voltar ao trabalho, mas vou voltar depois do expediente. Hoje, eu vou dormir aqui. Serão poucos dias. Se você seguir o tratamento em casa, vai poder voltar daqui a uns dias. – então, beijou-lhe o rosto e continuou – As suas cartas são muito bonitas, muito poéticas.
Maria Flor tomou aquele elogio para si como se engolisse o vento. Ele a chamara de poeta. Percebeu que não enxergava o ar, que ele era da cor do nada, mas que ela podia senti-lo em suas narinas. E pensou que a grande descoberta do invisível fora quando o vento . Algo existia violentamente ao seu redor, como um tufão, mas ela não podia vê-lo, como se fosse cega. Isso era o vento, e havia vento demais num á de suspiro. Como ela suspirava: Paulo a chamara novamente de poeta, a palavra louca não estava em suas palavras nem em seu semblante. O vento era a sua tenra cumplicidade com a cegueira, a sua parcela de participação no invisível, como se a natureza a resfriasse por baixo da camisola, onde ela era transparente como um riacho extinto, tão agreste como um sertão. Ela quase podia provar que o vento existia. Ela quase podia pegá-lo na concha das mãos. Ela quase podia engolir o vento sem soluçar. Ninguém também o via, mas ninguém era considerado louco por acreditar que ele existia. Era assim que ela se sentia. Agora, Paulo finalmente a compreendia.
Por alguns instantes, sentiu falta dos seus potes de escuridão, mas, de algum modo, sabia que não se podia abrir um punhado de escuridão sem ter a força de prendê-la novamente. E era preciso pensar nas consequências de se abrir o escuro porque eles nunca sabiam o que os estavam esperando do lado de dentro, como, por exemplo, a sua própria loucura, talvez; desenfreada; atrasada para o amanhã; como ela estava agora, adiantada para o serei. De algum modo, ela sabia que se afastara das pessoas por isso: para não dividir com elas a sua escuridão. Mas, agora, elas estavam todas daquele lado, deixando o seu pensamento penso para o lado de lá, tendencioso para acreditar na manhã. Era isso o que se chamava de esperança, não era? Paulo a compreendia. E isso era o mistério. O mistério era o que dava corda em sua estadia no mundo. Desde que o mundo era mundo, o Deus estava engrenado com o mistério. Por isso, ela também tinha medo de saber as respostas e perder as dúvidas em deus. Isso ela não suportaria, isso seria ainda pior do que estar enlouquecendo, porque ela estaria no mundo à própria sorte, em solidão. Mas, agora, Paulo voltaria para dormir ao seu lado, numa poltrona tão desconfortável, meu Deus. Paulo a amava e a chamara de poeta, a palavra louca não pairava no ar.
Ah, se Deus não existia, se a alma também não existia, qual era o sentido de tudo? Será que o sentido era a sua própria insignificância? E que ela estava ali, na cama de um hospital, esperando o seu noivo voltar, pensando dentro dos seus enormes pensamentos, e parecendo imensa, só para aprender a ser pequena? Ela era pequena, e Dra. Aline Guerra a ajudaria com o mercado clandestino. Era preciso esperar alguns dias, até que o remédio fizesse efeito, até que o remédio blindasse o seu corpo de todas as vozes. Quando as vozes voltassem, ela não diria nada, deixaria que elas zombassem de si. Porque teria o trunfo do futuro silêncio. Era uma questão de dias. Era uma questão de esperar.
Enquanto olhava uma moça que limpava o chão do hospital e sorria com tentura, Maria Flor perguntou-se se a moça conseguia ler os seus pensamentos, e ficou pensando que tinha saudade de pensar em segredo, de amontoar as ideias a um canto, como as pedrinhas que ela e Paulo amontoavam no quintal da antiga casa, quando eram crianças. As pedras nunca lhes contavam o quanto eram velhas, tão velhas quanto o início do mundo, talvez, ou o modo como se gastavam tão devagar. Será que uma pedra sempre existiu? – eles se perguntavam. Havia muitos segredos entre eles e as pedras e, com elas, Maria Flor aprendia sobre o silêncio. Às vezes, eles também paravam em silêncio, no meio do quintal, pensando que o lugar onde eles estavam pisando era muito antigo, era do tempo do início do mundo, que houve muitas árvores e animais selvagens passando por onde eles estavam pisando, talvez, até dinossauros. Pensavam que um dinossauro devia ter adormecido ali, que devia ter sonhado os seus sonhos gigantescos. Quem sabe, ele havia sonhado com os pássaros que ela vira? Pensar em segredo era um luxo na sua existência, mas que ela não valorizava porque sempre fora assim. Por isso, antes, ela não concebia que, um dia, isso pudesse ser diferente. É que ela não tinha olhos para o que sempre existiu. As coisas que estavam postas no mundo, havia muito tempo, ela não podia vê-las porque estavam demasiadamente misturadas aos seus olhos. Pensar em segredo, isto é, pensar sem que ninguém soubesse o que ela estava pensando, era tão natural para ela que ela não cogitava sequer a possibilidade de que alguém viesse a se intrometer em seus pensamentos. Não, antes, isso não existia: seus pensamentos eram fechados para os outros, e ela tinha sempre um lugar para onde existir: a sua própria mente, talvez. Ela podia se convidar a ser, mas faltar ao seu encontro e já não ir: por já estar lá. Antes, havia uma porta de entrada para si mesma, onde só ela habitava, só ela conhecia. Ela podia ficar horas em silêncio, pensando sem parar. Mas, desde que começara a escuridão, ela tinha de tomar extremo cuidado com tudo o que ela pensava, pois podia magoar as pessoas, podia magoar as vozes, podia pensar coisas ridículas, podia fazer suposições injustas, que as vozes podiam escutar, saber e desvendar. Mas era tão difícil: o seu pensamento corria como a água, e era difícil barrar o seu curso. Muitas vezes, Paulo achara isso uma grande loucura, mas sempre havia uma voz que lhe chamava a atenção quando ela estava pensando distraidamente ou quando ela entrava em vales de fantasia, quando ela começava a imaginar coisas impossíveis. Havia vozes que a repreendiam e, só então, ela percebia os absurdos que pensava. Então, ela muito se envergonhava. Às vezes, as vozes repetiam o que ela acabara de pensar! Então, claro estava que elas sabiam o que ela estava pensando. Maria Flor não sabia muito bem de onde essas vozes partiam, de onde elas lhe chamavam, mas elas sempre reconheciam o seu pensamento, e então ela se envergonhava profundamente por ter pensado o que eu pensara, sem tempo de frear as suas ideias sempre tão constrangedoras. E se aquelas vozes fossem vozes passadas, vozes muito antigas? As vozes de todos os que viveram no lugar onde ela estava passando naquele momento? Os seus amigos diziam que ela também andava mais retraída, que não os procurava mais, que ela estava afastada de todo mundo, mas é que ela tinha vergonha das coisas que pensara sobre eles, sem querer, pois ela também escutava as suas vozes como se eles tivessem descoberto os seus pensamentos. Então, quando olhou pela janela, Maria Flor lembrou-se de que, no passado, reunira-se com os seus amigos por ali, pois, naquela época, tinha a certeza de que eles não sabiam o que ela pensava, e a amizade entre eles era, de alguma forma, possível. “Ou será que nada disso é real e eu estou mesmo ficando louca?” – ela se perguntava em murmúrios inaudíveis. A sua loucura era estar muito sozinha, era andar numa terra em que ninguém mais pisara, e ser perseguida por pássaros, os pássaros que já não estavam ali. Era uma experiência aterradora. Era como acordar em outra cultura, em outro século, num futuro muito adiantado, com as suas roupas antigas, as suas lembranças remotas de como era bom pensar e sentir em segredo. Como ela sentia saudade de pensar o que quer que fosse e guardá-lo só para si! Ainda haveria um si? Em que parte ela deixara de ser o mundo? Em que parte ela se reunira ao que não era? Havia alguns séculos, o ser humano conhecia um botão para ligar ou desligar as coisas: a luz, os aparelhos domésticos, o rádio, a televisão, o telefone. Era assim que ela concebia o mundo: ela o ligava e o desligava. Até mesmo quando ela dormia ou despertava, ela participava desse mesmo entendimento. O dia nascia e o dia morria. O dia se acendia e se apagava. Ela dormia e acordava. Ela se despedia das pessoas. Ela desligava um telefone. Ela marcava um encontro. Era assim que ela também estava acostumada a viver. Fora assim que ela sempre vivera. Mas, desde que a escuridão começara, ela nunca podia se desligar das vozes que escutava. Ela nunca se despedia delas porque elas nunca iam embora de si. E, mesmo assim, elas não lhe contavam onde é que estavam. Elas apenas estavam. E diziam coisas como se sempre tivessem dito. Nenhuma delas se apresentara e, mesmo assim, passaram a morar no mesmo corpo e a compartilhar os mesmos sentidos. Quando ela sentia cheiros estranhos, como os de carne em putrefação, por exemplo, as vozes reagiam, exclamando frases de nojo. Por isso, era como ser habitada por dezenas de pessoas invisíveis, diferentes de si. Pessoas hostis – ela pensava. Não, elas não gostavam da Maria Flor que ela era. Numa noite, por exemplo, ela acordara com estranhos dentro dos seus sonhos, rindo dos seus sonhos, como se esses estranhos estivessem assistindo aos seus sonhos do lado de fora, e os achassem ridículos. Mas ela, ela era acostumada a sonhar em particular. Ela respeitava os absurdos que sempre surgiam em sua imaginação e tentava compreender as suas estranhas significações. Antes, ninguém ria dos seus sonhos enquanto ela sonhava porque, no sonho, ela não tinha consciência deles; porque, no sonho, ela estava dentro do próprio sonho mergulhada. Ela nunca conseguia estar desperta dentro do seu próprio sonho. Ela nunca sonhava que estava sonhando, como uma caixa embalada por dentro da outra. Mas, desde que a escuridão começara, aquelas vozes eram uma consciência intrusa no seu inconsciente, como se ela tivesse dormido com um rádio ligado. Um rádio que a espionasse, soubesse de tudo o que ela estivesse pensando ou sonhando, e fizesse comentários corrosivos a respeito dos seus pensamentos. Então, era como se ela não sonhasse de todo, não sonhasse inteira, mas deixasse, o tempo todo, uma fagulha de si acordada durante o sonho. Era como se o seu sonho se projetasse sobre as paredes do quarto. Então, ela sonhava em apenas uma parcela de si, uma parcela insegura, reprovada, e a outra se mantivesse desperta; então, por mais que ela guardasse os seus cadernos, ela tinha a impressão constante de que estava sendo lida por estranhos. Saberiam o que ela ainda não contara a ninguém? Como isso era possível, meu Deus?
Maria Flor passou mais alguns dias no hospital, mas Paulo voltava todas as noites, para dormir naquela poltrona desconfortável. Às vezes, ela acordava no meio da madrugada, e ficava pensando, mas tentava pensar e sentir sem muitos ruídos, para não acordá-lo. Todos os dias, ela seguia tomando a medicação e, aos poucos, percebeu que as vozes ficavam mais e mais espaçadas, que era o quase silêncio. Depois, quando ela dormia, não sabia o que iria acontecer quando acordasse, mas era a memória que tinha de outras noites que a fazia adormecer tranquila. Então, chegou à conclusão que, se já tivesse morrido, ela nunca ficaria aflita. Nascera invariavelmente trancada, sabendo de coisas que só ela sabia, que só ela pensava, e chamava aquele segredo de eu. Concluiu que trancara-se a salvo dos seus vizinhos, trancara-se a salvo dos estranhos, mas tinha as vozes que lhe tinham visitado quando ela menos esperava. Mas até elas, agora, sumiam. Era por não querer ser ela mesma que antes ela queria fugir de si? Ora, mas para onde ela ia? Não podia se afastar para o lado e ser uma outra pessoa. Tinha de se carregar aonde quer que fosse. Tudo o que ela não era acumulava-se ao seu redor, procurando uma saída para se esvair; só que ela não podia se ausentar de si mesma por muito tempo, senão ela não teria ninguém para recebê-la quando ela já estivesse de volta, ou para abrir o seu invólucro quando ela própria já estivesse ali dentro, querendo escapar. Ó sim, por muitas vezes, ela tentara escapar de si mesma, principalmente, quando ela já estava começando a ser feliz. Nessas horas, ela reservava um horário para a tristeza, como se ela fosse uma grande convidada de honra a quem tivessem esquecido de chamar, e isso fosse um lapso imperdoável. Mas, agora, ela só queria ir para casa que abrigava o seu ser. Havia silêncios em vários idiomas e dialetos, e ela agora era poliglota em silêncios.
Às vezes, olhava o relógio e se perguntava quando iria embora, não porque estivesse aflita no hospital, mas porque a vida se descortinava, e ela queria viver. Então, ela se lembrou de que, quando era criança, às vezes, parava no meio da brincadeira, com o brinquedo nas mãos, as crianças correndo em segundo plano. De algum modo, ela sabia que, para sempre, ela se lembraria daquela experiência, pois ela já tinha percebido que todas as vezes em que ela pensava no tempo, ela conseguia retê-lo. E o tempo não era como a bola que saía rolando desgovernada pelo íngreme quintal, até onde não pudesse mais avançar. Ah, não, era um tempo embrulhado dentro do outro, e que pensando muito nele, dava-lhe uma vontade louca de viver, pois tinha sempre a consciência do tempo e de estar viva. Mas, naquela época, ela teria se assustado tremendamente com o mundo, se o mundo, de repente, tivesse quebrado a casca para o além, como se, agora, ela visse o céu se partindo como a casca de um ovo, como um casulo, e ela não soubesse o que haveria acima dele, um novo mundo, muito mais amplo, talvez. Era com isso que as aves lidavam antes de projetarem as suas asas rumo à amplidão: uma casca muito apertada e restrita que mal comportava os seus corpos. E, mesmo assim, elas conseguiam depois atravessar os ares, empurrando o invisível do mundo contra as suas asas. Era assim que, pela primeira vez, ela sentia vontade de viver. De algum modo, ainda estava em algum lugar sem paragem. Estava ao meio de tanto partir para o instante seguinte. Numa fração de segundo, ela tinha de pular para o instante seguinte antes de machucar os seus pés na roldana do tempo. Ela precisava, então, de descobrir um lugar que não se concedesse ao tempo, um lugar em que o tempo não pudesse mais entrar ou sair, em que não atravessasse tudo, um lugar tão suspenso quanto uma crisálida, tão intocável quanto uma fotografia. Nesse lugar imóvel, ela guardaria a sua avó, mesmo em menina de si, de jamais avó, pois a sua avó tinha uma cadeira de balanço e sentava-se ali, a se embalar, feito uma avó de si mesma. Quando Maria Flor estava ao lado dela, nunca tinha dúvidas da realidade, pois havia entre elas os testemunhos de tudo o que viveram juntas. Aos poucos, Maria Flor olhava os pequenos vincos na pele de sua avó e sabia que eles eram pequenos degraus para si mesma. Progredir para avó seria se despedir da sua própria infância. Ela sabia, mesmo quando era pequena, que a sua avó já era grande, do dobro da estatura, mas encurvava-se para pequena. Por isso, ela compreendia tanto as conversas dos grandes quanto dos pequenos. Maria Flor podia contar qualquer coisa de importante ou brincar com as bonecas que a avó entendia também. Se a sua avó pudesse brincar até mais tarde, até o mais tarde do era uma vez, ela poderia enfim descansar de crescer, pois crescer era muito cansativo. Crescer era para o incerto. Crescer era para o sozinho. Crescer era para o abismo. Mas a avó tinha um compromisso inadiável com o amanhã e, por isso, ela foi envelhecendo. Inevitavelmente, a avó não conseguiu desmarcar os amanhãs. Por isso, quando a sua avó morreu, num hospital parecido com aquele, o tempo atropelou Maria Flor em galopes de cair. Então, quando ela conseguiu se levantar, o tempo já tinha passado sobre tudo, levando consigo todas as suas histórias. Eram milhões de pássaros atravessando a sua caixa torácica em uma noite que não tinha mais fim, que nunca mais amanhecia. Não era um pesadelo, meu deus, fora tudo muito rápido, Maria Flor não conseguira se despedir da sua avó; não conseguira devolver-lhe o sopro em suas narinas, ou arregimentar o ar a sua volta, ou assoprar, assoprar e assoprar, como a avó assoprava os seus machucados, as suas feridas. Maria Flor não conseguira segurar as suas mãos para o lado da vida enquanto a avó caía para o nunca mais. Teve de deixar a sua avó atravessar sozinha a escuridão da morte. Maria Flor não estava lá, do outro lado do fim, com os seus olhos presos aos dela, até que a avó fosse a primeira a fechar os seus. Não pôde beijá-los devagar, encostando os seus lábios em tudo o que a avó havia testemunhado em oitenta anos de existência. A avó tivera de fechar os seus olhos lentamente, sem que os olhos de Maria Flor os amparassem. E, depois, Maria Flor não compreendia por que parecia tão imensa em seus pensamentos, mas era tão minúscula na escala do universo, menor do que uma poeira. Não compreendia por que o ser humano desvendava fagulhas do Universo, mas depois morria como um vírus ou uma bactéria também morrem, quem sabe, compreendendo fagulhas do seu corpo. Não compreendia por que os seres microscópicos queriam tanto viver e ela também queria, e por que tudo era assim, esse embate desesperado pela vida. Não compreendia por que todos os seres do planeta lutavam tanto para preservar a vida, por que queriam tanto acolher e ser acolhidos pelos mais próximos, por que nunca queriam se despedir e se separar uns dos outros. Não compreendia que força era aquela que os impelia a continuar vivendo, sobrevivendo, e de onde tudo isso vinha. Talvez, ao sentir que estava morrendo, a avó sabia que os abismos se inauguravam, os abismos que só os pássaros sabiam atravessar. Então, lembrou-se de tudo o que ela deixara de dizer ou de fazer, de todo o seu amor guardado para quando. A sua avó se fora, nunca mais respiração dela em seu rosto. Nunca mais aqueles braços que a abraçavam tão fortes, puxando-a para perto do peito. Maria Flor não pôde chorar com a avó a sua vida chegando ao fim. Desde o princípio, sabia não seria para sempre. Então, será que a avó olhava os aparelhos do hospital, os botões, ao invés dos seus olhos, e sentia os tubos na pele, ao invés das suas mãos, e sentia o calor da manta do hospital, nunca os seus braços? Quanto medo a avó deve ter sentido do abismo que se abria em sua existência? O medo da noite escura do Universo? Por isso, naquele instante, enquanto pensava e se lembrava da avó, a vida arrebentava nela, a vida a rasgava, mas ela não podia dizer para a avó o quanto a amava. Lembrou-se que, no dia do enterro, jogou flores, muitas flores no caixão da avó, com amor e com raiva, arrancadas do próprio colo de deus.
Por isso, quando Paulo veio buscá-la para eles irem para casa, ela o apertou com forças no braços. Os seus braços não eram do tamanho do mundo, mas eram feitos na exata medida para abraçar alguém. Por isso, ele a abraçou de volta, e o mundo parou por três segundos: os carros pararam, os pássaros ficaram suspensos no ar.
Ela tomou um banho e colocou um vestido que ele trouxe em uma pequena mala. Pensou que não deveria vestir um pedaço de pano que já se considerava vestido antes mesmo de enlaçar o corpo, pois trazer um particípio passado enrolado na pele era estar envolta naquelas lembranças. Mas era o vestido que a sua avó costurara para si.
Depois, quando eles estavam indo embora, Maria Flor parou diante da porta do hospital. No céu, inconfundível, ela viu um arco-íris, depois da chuva. E o arco-íris, que estava frouxo, deitado em algum chão desse mundo, esticou-se em arco no céu. Afinando-o, o sol deu o tom. E ela pensou que aquilo era um sinal. Paulo apertou a sua mão enquanto eles desciam as escadas, e depois abriu-lhe a porta do carro. Seguiram em silêncio, mas, às vezes, ele olhava para o lado e sorria que sim. Então, ela pensou no seu pai: como é que alguém, com uns olhos tão azuis, conseguia esmagar a beleza? Talvez, fosse por isso que ela nunca alcançava o amanhã. Então, quando ela chegou em casa, ela tirou os seus sapatos e os deixou virados à porta, virados em retrocesso, para ver se eles guardavam alguns dos esconderijos e atalhos aos caminhos que a traziam de volta. Ela tinha esperança de que, assim, os seus sapatos soubessem por onde levá-la: para estradas mais felizes, talvez.
Então, porque ela estava emocionada de voltar para casa e não sabia o que fazer, ela foi até o jardim e fez uma reza para estancar o choro, com pequenas folhas da terra, esfregando o vento no rosto até ele ficar invisível. E se agachou, vendo as lágrimas formarem pequenas poças no chão. Era de água salgada para as formigas, era um lago, era o mar. Se ela fosse seguindo a formiguinha, ela descobriria onde era a casinha dela, mesmo que ela fosse diminuindo, diminuindo, diminuindo. Não sabia se deus existia, mas só quem existia em cada fresta criaria as montanhas da Terra sem se esquecer do pequeno montinho das formigas. Era preciso enfrentar, era preciso enfrentar, as suas lágrimas despencando sobre as formigas.
Depois, arrumando a casa, pensou em jogar fora todas as flores de plástico e substituí-las por plantas de verdade. Afinal, ela pensou, as flores de plástico, mesmo quando eram reais, mesmo quando podiam ser vistas por todo mundo, eram tristes pela farsa que inauguravam. Como se elas estivessem envergonhadas de mentir, como se, diante das outras reais, elas estivessem com vergonha de sobreviver, enquanto todas as outras já estivessem morrendo, pendidas pela verdade, pendidas pelo cansaço, pendidas pelo ar. Pensou também que, em algum lugar do mundo, um passarinho estava fechando os olhinhos pela última vez. E pensou que, antes, ela estava procurando um amigo sozinho de andar discreto e gesto silencioso, que estava procurando, desesperadamente, um amigo que soubesse se aproximar de um passarinho. Mas, agora, ela poderia ser esse amigo, ela poderia ser a amiga de Paulo de novo, que ele sempre fora o seu amigo. E ela queria, mais do que tudo, fazer um intervalo no meio da loucura para dar vazão ao sonho.
Nesse instante, um homem passou pela rua, vendendo travesseiros, e ela pensou que um homem que lhe vendesse travesseiros no meio da rua não poderia vender os sonhos acoplados. Isso ele não poderia prometer, isso teria de ser por sua conta: voltar a sonhar.
Então, tirou o chinelo e decidiu pisar no meio da terra do jardim e, enquanto sentia a grama roçar entre os dedos, percebeu que três novos casulos se formavam no jardim. Pensou que aquilo também era um sinal, pois as lagartas estavam sempre transformando alguma coisa velha e esquecida em uma espécie de ressurreição. Uma cobra era uma cobra em si mesma, mas uma lagarta era sempre para depois, pois não conseguia se desvencilhar do seu futuro. Uma lagarta estava sempre escorregando para o amanhã, sem conseguir se conter. Uma lagarta passava muito tempo em seu casulo, sem saber o que iria acontecer pelo lado de fora. Ela não sabia, por exemplo, se era o mundo que ganharia asas, de repente, enquanto ela se recolheria ao redor de si, ou se era ela que esperaria o mundo se transformar. Mas, aos poucos, ali suspensa, ela ia se acostumando com a iminência do ar: o mundo em suspensão. Meu deus. Talvez, dentro do seu invólucro, uma lagarta tivesse alguma memória do mundo, tal como o conhecia antes. Talvez, ela ainda sonhasse com o chão. Talvez, os seus sonhos já fossem presságios de asas. Ou, talvez, ela tivesse alguma intuição do vento, e pressintisse que estava prestes a voar, que aquele era o seu destino primeiro. Talvez, ela estremecesse de ansiedade e pavor ao perceber o desenvolvimento de suas asas: tudo tão diferente, tão leve, quase um trauma ou um espanto. Como se ela tivesse nascido uma segunda vez, para uma vida em que tudo se desmanchava e recomeçava, ela teria menos pés sobre o chão. Para onde eles teriam ido? Teriam se transformado em alguma certeza? Ela estaria preparada para dar um grande salto no ar? Ó meu deus. Como ela faria sem o mundo que conhecia? Ela, que também andava para frente com os seus infinitos pés, ela, que nunca andava para trás. Ela, que obedecia ao tempo. Então, Maria Flor percebeu que uma lagarta tinha tantos pés sobre a terra que quando ela pisava: ainda não, ainda não, ainda não. O começo de uma lagarta precisava de paciência para esperar o seu fim, pois eram muitos os passos até que ela encontrasse um lugar ideal para dormir o seu grande sono, onde o seu amanhã estaria em jogo. Por isso, Maria Flor então pensou que também poderia atravessar. E pensou que deus talvez fosse um personagem. Junto à grade de um velho portão no jardim, uma crisálida preparava-se duramente para atravessar o invisível do mundo com as suas asas. E isso não era fácil. Em contato contínuo com a terra, ela era acostumada a rastejar, mas de uma hora para outra, ela perdera o chão, ela perdera a terra, e isso talvez fosse muito aterrador. Talvez fosse, mais ou menos, como enlouquecer. E ela, Maria Flor, também estava ali, dentro de um casulo, esperando o mundo voltar a si. Só depois é que a lagarta ganhava o apoio das flores, onde ela descansava e se alimentava. E isso era o que ela chamava de esperança, talvez. Se a lagarta guardava alguma memória do chão e dos seus dias rastejantes, talvez, ela pensasse que fora o chão que ficara mais leve, que ele perdera a consistência de terra, que a terra virara poeira, e que a poeira era só a vontade que o chão tinha de voar. De algum modo, Maria Flor sabia que uma lagarta passava muito tempo ensimesmada, tentando equilibrar o seu instinto de vida, até descobrir uma saída para sua pergunta central: “o que aconteceu com o mundo quando eu enlouqueci?” Será que alguém sabia? Não, Maria Flor não sabia. Com as suas asas desenroladas e doloridas, ela estivera tentando atravessar um quarto escuro e sem janelas, onde não sabia o que ia dentro de si, o que ia dentro do mundo. Não sabia para onde ia, para quem ela se tornava, o que ela poderia fazer do que não morrera. Mas há vários dias, ela, Maria Flor não morrera. E o caderno estava quase chegando ao fim, ela estava quase conseguindo viver.
Então, quando uma música na rádio de Aureliano começou a tocar, ela decidiu que não pensaria mais nele, mas se pôs a dançar mesmo assim porque dançar era acariciar o vazio. A dança era essa moça tímida que passava os seus dias trancada até pensar que os tambores da música eram os seus amigos batendo na porta. Então, Maria Flor deu uma passagem para a alegria, para que ela se esbarrasse na entrada onde tudo começava, inclusive a verdade. Era isso: ela precisava escrever uma carta para contar a verdade, mesmo que essa verdade fosse inventada, pois, de algum modo, ela não sabia mais o que lhe acontecera e o que ela inventara.
Depois, saiu de casa para se sentar no banco de uma praça e ficou olhando a rua. Ela esperava o melhor segundo para pausar o tempo, e só então andava com cuidado no meio dele. Às vezes, a pausa era tão bonita que ela cruzava o tempo só para vê-la. Era sempre isso: o céu que se descolava das nuvens, as nuvens que tombavam no rio, o rio que escoava no chão. Não, não era difícil congelar a cena, quando as folhas não pousavam no chão, e os braços ficavam suspensos no ar, num abraço que ela não terminou. Parecia até que era um ontem, ela correndo entre as árvores tão cheias de frutos. Ela pegou um dos frutos, mordeu. O tempo pegou uma das flores, caiu. Parecia até que era um ontem, ela deitada na grama para olhar as nuvens e os seus pés descobrindo na terra a flor que ela nunca mais poderia salvar. Se, ao menos, ela aceitasse o sol e a terra que tinha. Se, ao menos, ela não desistisse mais da primavera, quando o inverno chegasse primeiro, pousando as suas mãos sobre as dela. Parecia até que era um hoje, os transeuntes com pressa, trazendo os caminhos do futuro para baixo dos pés. E ela entre os seus pés distraídos, descalços, colhendo do seu quintal antigo, uma erradia flor. Então, Maria Flor pensou em Aureliano e guardou aquele segredo. As pessoas se encontravam na rua, nas praças, no cinema, onde as calçadas se encontravam apinhadas de gente, para se darem as mãos e passearem por aí. Mas Aureliano não estava lá, e não aparecera no encontro que eles tinham marcado. Por isso, ela ficou horas e horas esperando na infância errada, num lugar cercado por abandono. As pessoas se encontravam por fora, mas ela ainda não entendia o lugar secreto de Aureliano. Parecia um lugar vago demais, amplo demais, forrado de nada por todos os lados, um lugar quase vizinho da loucura, e por isso ela teve muito medo do vazio que se avizinhava. Medo de um foguete que poderia aterrissá-la em outro lugar do universo, na escuridão dos seus próprios olhos fechados. Mas o lugar de Aureliano não tinha paredes, como se ele o tivesse pintado de vazio, em duas demãos. Naquele lugar, o seu pai nunca lhe fazia mal. Ele consertava os seus brinquedos. Ele lhe ensinava matemática. Ele construía um balanço bem no fundo do quintal. Mas, na última noite em que Aureliano leu ainda mais o seu pensamento, a tinta de vazios se esparramou nos seus cabelos. Então, Maria Flor deixou que ele os lesse, deixou que ele os lesse porque, como se ela tivesse pintado um sol por dentro do peito, nunca mais anoitecia ao seu lado. Ela nunca mais tinha aparecido com carícias no meio da noite, nem falado em seus ouvidos, nem mandado mais mensagens pelo rádio e, de alguma forma, Maria Flor pensou que era melhor assim. Pensaria em Paulo e no seu casamento. Paulo, que era frágil como um não, que deixava a vida passar, sol a sol, sem nunca lhe dizer sobre a busca vazia dos seus braços ao redor dos seus. Ele, que era frágil como um filhote à beira da vida. Ele, que tinha medo de feri-la com as suas certezas tão antigas. Medo de que elas fossem demasiadamente grandes para os seus enganos. Ele, que tinha medo de ferir as suas fugas incessantes. Ele, que era frágil como a dúvida. Ele, que podia se quebrar entre os seus braços resolutos. Era preciso muito cuidado para amar Paulo a quase nada, só o tanto que ele aguentava. Então, ao pensar nisso, Maria Flor foi tateando ao redor como se ela fosse cega e precisasse compreender as palavras com a ponta dos dedos, sentir o seu gosto mais invisível. Mas quando era doce, não era uma entrelinha. Ela descobria farpas no meio delas, e elas a machucam por ela, Maria Flor, não ser uma boa construtora de pontes, por ela não ter olhos para fora, por elas, as palavras, deixarem uma criança com um caderninho nas mãos, um caderninho secreto cheio de bilhetes que ela jamais entregou. Se Maria Flor se diluísse numa poça no chão, se ela não retivesse o tempo, ela poderia morrer, como se houvesse um furo no chão em que o mundo inteiro pudesse se esvair, ou um ralo onde o mundo pudesse acabar. Então, ela esperou. Esperou que as últimas vozes silenciassem e lhes disse adeus. De algum modo, por mais que brigasse com elas, teve vontade de chorar.
Depois, ela caminhou até a outra rua e quis olhar o chão de perto, não mais do alto de uma janela, mas as árvores sendo maiores do que ela, os carros mais velozes do que o tempo, as pessoas em frescas pinceladas, os prédios vistos de perto, minúsculos ao redor do sol, gigantescos ao lado de um formigueiro. Ela quis caminhar na calçada com o seu corpo inteiro, pesado de toda a gravidade, salvo de um impulso que ela não dera. Ela quis sentir o chão como um pouso, como uma crisálida sem asas que tivesse novamente uma dezena de pés para caminhar na solidez da terra. Quis tudo isso, e quis urgente, mas algo jogado no chão da calçada puxou-lhe pelo olhar. Maria Flor abaixou-se e mexeu em uma caixa de papelão meio rasgada. Era um gato muito pequenino, um filhotinho, de patas muito finas e estreitas diante de si. Era um gato muito preto, que nada sabia do mundo, apenas que, naqueles dias, chovera e fizera frio, e que quanto mais as pessoas iam embora, mais elas se tornavam menores diante dos seus olhos. Era o abandono à espera de qualquer amor. Estava embrulhado em uma caixa endereçada ao primeiro passante que se espremesse por dentro, e não lhe pedia grandes sacrifícios, queria apenas se aquecer do mundo, queria a sua mãe e os seus irmãos, queria paredes contra o vento e a garoa, queria comida para aplacar-lhe o desespero da vida. Ele não entendia por que garoava, por que garoara tanto naqueles dias, não entendia por que a noite era tão fria, e os homens de passos tão apressados, não entendia por que estava com tanta fome e tanto medo e tanto frio e, por que, uma vez colocado no mundo, tinha de passar por tudo isso, ou por que tudo era assim, não entendia o que tinha feito de errado para ser abandonado daquele jeito. Onde estava a sua mãe? Onde estavam os seus irmãos? Era um amanhã nas palmas da mão. Então, Maria Flor pensou que ele lamberia os seus dedos, mas ele, que ainda não vivera quase nada, mostrou-lhe os dentes como uma fera em miniatura, um filhote de fera imaginária. Cabia nas conchas da sua mão com toda a sua fúria indefesa, mas sabia se defender do que ainda nem vivera. Ele se defendia como se a própria natureza já tivesse lhe avisado, muito antes de nascer, que a vida não seria muito fácil. Ele já estava consciente dos perigos, nascera com as suas pequeninas armas e escudos. Então, se ele deixasse, Maria Flor pensou, ela poderia pegá-lo para si e cuidar dele como o filho que nunca tivera. Mas ele lhe mostrou tanto os seus dentes pequeninos, e deu tantos espirros, e eriçou tanto o pelo que ela quase julgou que ele fosse muito maior e mais perigoso do que aparentava. Então, ela sorriu, fingindo um pouco de medo. Ah, que ela não pensasse que aquela aproximação seria fácil, que ela não o levasse dali, pois logo a sua mãe voltaria, voltaria, sim. Então, Maria Flor não sabia como lhe contar dos descaminhos que aconteciam em nossos amanhãs. Ela não sabia como lhe contar, quando ele se acalmasse, que agora só tinham um ao outro para se protegerem da garoa, que, às vezes, as pessoas tinham de descobrir os caminhos sozinhas. E que, se ele quisesse, eles poderiam encostar os sozinhos um no outro. Não havia mais paredes por onde se encostarem, o mundo era vasto, não era uma pequena caixa encharcada de chuva. Maria Flor tentou lhe assegurar que, se a mãe dele pudesse, levaria todos eles para o fundo de um armário seco e aquecido para lambê-los até o final dos tempos, que ela também sentia muito a falta dele, que ela lhe procurava por toda parte, que ela já havia começado a tirar-lhe a placenta, logo o mundo seria todo sem paredes. Seria melhor que ele se acostumasse com a vastidão do mundo e as leis da sorte. Agora, Maria Flor tinha um segredo por baixo da sua vida: era um ser que precisava de si. Era um filhote de gato à beira da morte, miando toda a sua incompreensão do mundo e abandono. Os dois tinham avizinhado as suas mortes, agora, só lhes restava viver. Então, ela procurou olhá-lo com o seu medo mais intrínseco. Ele, todo pretinho, era da mesma cor de uma sombra apanhada entre as mãos, uma sombra em miniatura, moldada entre os seus dedos. Ah, quem sabe, ela poderia deixá-lo ali, ela chegou a pensar, ninguém a vira mesmo, mas decidiu que não conseguiria jamais: ela o vira com o seu olho mais interno, que era onde a imagem não se desvanecia nas noites insones. Ela o vira com a sua necessidade de vida, com a sua necessidade vizinha à dele. E, depois disso, se ela o deixasse ali, seria ela a causar-lhe o frio, o desconforto da fome, a assoprar-lhe o vento, a chamar-lhe as feras antigas, as feras que ele conhecera de seus próprios instintos. Ela o vira, e era tarde demais: a natureza a faria rolar de um lado ao outro do travesseiro, sonhar com lobos famintos, tornaria a sua manta fria e a cama, coberta de chuva; faria o seu estômago grudar nas costas de tanta fome, e o medo a levaria para lutas ancestrais. Ela simplesmente não conseguiria deixá-lo ali: eles já se pertenciam. Se ela o deixasse ali, ele sofreria cada dia maior. A vida não pararia de crescer por dentro dele, e já havia o seu sofrimento por estar longe da sua mãe e dos seus irmãozinhos. Maria Flor só poderia consolá-lo da separação, oferecer-lhe o seu ser para que, aos poucos, ele se recuperasse dos traumas de ter escorregado para o meio da vida. Então, ela poderia contar-lhe que, às vezes, a vida podia ser um novelo de lã jogado no tapete da sala ou o calor de um colo. Por um momento, teve vontade de abraçá-lo e de lhe pedir que a salvasse da vastidão dos amores, das alturas, das cordas, das lâminas, do estilete, que lambesse as suas mãos, as suas feridas, a sua loucura, se não fosse lhe pedir muito, se não fosse, que ele deixasse o seu cheiro em si, tomando-a para si, que ele aceitasse o seu desamparo e o seu amor. Pediu que ele não a empurrasse ao mundo sem apoios, que não confiasse assim na força das suas pernas adultas, que ele não a rejeitasse, mas fizesse questão do seu amor. Ela tinha uma condição grave, mas se ele pudesse confiar nela, ela nunca lhe faria mal, ela sempre iria ao consultório de um psiquiatra, como Paulo queria, ela sempre iria ao consultório de um psicólogo, como Paulo também queria. Bastava que ele deixasse que ela ficasse com o gatinho para si. Era a sua condição. Não, ela não era perigosa para os outros, e não seria mais para si mesma, nem para ele, o seu filhotinho. Ele poderia ficar tranquilo. Maria Flor queria ser a sua mãe adotiva, queria muito, a mãe. Às vezes, existir era imprevisível e escuro, mas, se ele quisesse, eles poderiam dormir sob a mesma manta nos dias de trovão. O trovão nunca entrava na fresta de um silêncio dividido. Quem sabe, eles pudessem confiar um ao outro o não vivido, e isso era enorme, era do tamanho do medo de cada um, e o medo era tudo aquilo o que ainda não. Mas, ao lado dela, ele dormiria várias horas sem pensar no futuro; pensaria só na hora de sentir: a fome, o frio, o medo; mas não temeria nada. Aos poucos, ele poderia acostumar-se com ela como se a sua mãe crescesse para homo sapiens, estariam igualmente presos nas leis da vida, dividindo o mesmo planeta, o mesmo quarto, a mesma solidão. Então, Maria Flor deu-lhe o nome de Caetano, e pediu que ele aceitasse uma única condição: que eles nunca caçariam os pássaros, que eles os fariam voar por mais um ou dois para sempres. Maria Flor disse-lhe tudo isso em silêncio. Entre os dois, nenhuma palavra era necessária, mas ele estava sempre a lhe dizer certas coisas, a olhá-la com os olhos de amparo. Então, de repente, enquanto voltava para casa com o gatinho no colo, ela teve plena consciência de que precisava deixar Aureliano como ele também a deixara. Tinha de se soltar de uma âncora no fundo do mar e correr à sorte dos ventos, a nadar incógnita entre as pérolas e as tartarugas, e descobrir as águas que existiam no mundo lá fora. Tinha de deixar as ondas arrastarem os seus desertos para o fundo do mar. Havia um tesouro ali escondido que servia ao crescimento dos musgos, de pequenas algas, de memórias insolúveis, de um amor que ninguém mais poderia lhe dar da mesma forma. Um tesouro de moedas muito antigas que não valiam mais naquela cidade. Então, acariciando o gatinho, ela contornou, no etéreo, os limites do que a constituíam, até quase apalpar o que trazia de natureza humana. Quando exposta ao oposto extremo do que se reconhecia, ela contornava as fronteiras de onde não conseguia mais avançar, as fronteiras nas quais se esbarrava no tempo. O tempo, que lhe deixava, inutilmente, alguns vergões sobre a sua pele. Pensou que, de algum modo, estava marcada de eternidades. Então, mais uma vez, viu duas pessoas que se perguntaram as horas na rua, e ficou pensando muito no tempo. Contou ao gatinho que havia coisas que a surpreendiam no mundo: o ser humano inventara o relógio a partir das coisas que se repetiam. Ela percebera que as estações voltavam depois de um tempo, assim como a folhagem das árvores, o amanhã. O amanhã era só uma promessa do tempo, que nunca existia mais. A sua vida era só aquele instante exato em que ela respirava, observava uma flor na terra, olhava uma pessoa que a olhava de volta, via pássaros voando, piscava, olhava-o ronronando, desviava o olhar. Mas a memória que ela tinha de outras flores, amarelas e azuis, fazia a sua noção do tempo, a sua vida ampliar-se em passado, presente e futuro. Se ela não tivesse memória – ela dizia para ele – não conceberia tempo algum. Ela seria alguém que teria de aprender, todos os dias, a andar de bicicleta, a escovar os dentes, a vestir um vestido. O relógio nunca funcionaria. Os ponteiros estariam sempre em posições diferentes, mas parados. Não haveria instrumentos para perceber que o ponteiro se deslocara de um lugar ao outro. Sim, era preciso memória para reparar no vento, para ver um pássaro voar.
Então, só naquele instante, caminhando pela calçada com o gatinho em seu colo, ela começava a compreender o chão, o quão era rico o princípio de tudo. Por isso, continuou pensando que, às vezes, duas pessoas poderiam ser amigas sem nunca mais se falarem. Era como o sol que ninguém convidava, mas ele, num dia frio, simplesmente, adentrava pela janela. Naquela manhã, ao conversar com Paulo, percebera que havia nos olhos dele uma multidão de estranhos que, de repente, parou um instante para olhá-la. Então, ela empurrou os olhos dele com os seus e ouviu o silêncio dos seus pensamentos, já não sabendo se aquilo que ela pensava era dela ou se era dele porque olhar nos olhos de um amor era se deixar espiar por estrelas. Como se aquilo que ela pensava também já fosse tarde demais, os seus pensamentos sugados pelos olhos de Paulo. De algum modo, ela só sabia que havia nos olhos dele uma correria inútil de tampar segredos, e ela soube de todos eles, não por meio de palavras, mas por meio de silêncios. Então, teve a certeza de que ele aceitaria a vinda do gatinho, e os seus olhos se encheram d’água.
Maria Flor andou as ruas todas em silêncio, tentando fazer silêncio pelo lado de fora. Quando ela não queria que os seus pensamentos acordassem o gatinho em seu colo, ela preferia pensar sem muitos ruídos. Por isso, ela se lembrou de sua avó. A sua avó, em algum lugar do tempo, só queria um abraço, e avós, na sua história, eram pessoas que esperavam o dia todo por um abraço. E abraços, na sua história, eram técnicas de estourar, com o corpo, um balão cheio de vazios. Então, em seu pensamento, ela veio pelas ruas escrevendo cartas para a sua avó, pensando que alguns escritores escreviam pela arte, pela linguagem, pela literatura. Aqueles, sim, eram os bons. Ela só escrevia para fazer afagos e porque tinha de encontrar um jeito de alongar os braços e estreitar distâncias e encontrar os pássaros. Havia muitas distâncias em si (e uma enorme timidez). Alguns escreviam grandes obras, mas ela só escrevia cartas e bilhetes para escondê-los, com todo cuidado, embaixo das portas. Por isso, naquela tarde, ela ficara existindo à beira do nunca, com o começo de uma carta e um abraço imaginário em sua avó. Pensando, que, para aquele dia, para aquele dia tão cheio, seria só.
Ao chegar em casa, deu um banho quente no gatinho, tirou-lhe as pulgas, mostrou-lhe a casa, alimentou-o. Então, quando Paulo chegou do trabalho, e viu o gato brincando com uma bolinha de papel sobre o tapete, riu-se admirado, perguntando:
– Flor, e agora, o que nós vamos fazer? O que você nos arranjou?
– Eu tenho uma proposta.
– Hum…
– Se nós pudermos ficar com esse gatinho, eu vou a todos os médicos que você quiser, tomarei todos os remédios que precisar.
– Sem dúvida alguma.
Então, enquanto ele acariciava o gato, ela olhou bem para ele, pensando em quanto tempo ela levaria para repousar os olhos ao redor dos seus e ir deslizando pelos pequenos detalhes, na beleza não manifesta e, ao mesmo tempo, ofuscante? Quanto tempo ela levaria para repousar os olhos nos olhos dele, sem qualquer pressa, sem procurar ali dentro o seu próprio reflexo? Lembrou-se então de um dia, depois que a sua avó sofreu um AVC, ela aninhara as suas mãos por dentro das delas, encostando o seu rosto em seus dedos tão frios, como se a avó tivesse acabado de nascer em seu corpinho já envergado pelo tempo e marcado pelos dias… Naquele segundo, ao lado da sua avó, Maria Flor entendeu que nada era mais urgente, nem mais importante, do que ouvir a sua avó reaprendendo a falar, e que ela sequer começaria a ver alguém – além de si mesma – se não pudesse enxergar as pessoas para as quais ela olhara a vida inteira. Depois, ficou pensando: será que, às vezes, ela ia com tanta pressa ao encontro de Paulo que se esquecia de se levar junto? Será que o sol, quando era muito forte, fazia a sombra chegar primeiro do que ela própria? Será que era assim que tudo acabava ou nem mesmo começava? Ela não sabia, mas, de qualquer forma, naquela manhã, ela tinha acordado com uma fresta de luz brincando na cama, o sol deitando a sombra em suas pálpebras. E era tão bonito e simples ver a luz pintando os móveis de colorido que ela entendera o fim de um relacionamento: nenhum amor florescia dentro de uma casa, sem contemplar por instantes a luz de uma tarde. Então, ela guardara aquela fotografia por dentro dos seus olhos para quando ela olhasse Paulo. As coisas mais belas ela as olhava com força, para quando Paulo a olhasse. E ele, como sempre, não lhe respondesse palavras, não lhe escrevesse palavras, mas quando o sol fosse sumindo, estendesse sorrindo o seu cachecol xadrez. Chamou-o para se sentar no jardim e lhe perguntou:
– O que você quer fazer?
– Não sei, está bom ficar aqui.
Então, Maria Flor pensou que eles poderiam conversar para sempre sem mover as folhas que continuariam a cair. Pensou que não haveria mal algum, nem mortos e feridos, nem bruscas precipitações de chuva, apenas algum calor nas entrelinhas. E se ele tivesse de se explicar, jamais contaria o seu apreço por poetas falidos, diria apenas, refazendo as voltas do seu barquinho de papel, que o mundo era bravo. Depois, fechou os olhos sem saber o que fazer do desconhecido. O que ela faria do que sentia como abandono? O que ela faria daquele amor que lhe restara entre as mãos, e que era imenso, e que era só dela? Para onde ela iria com aquele velho navio ao fundo do mar? De algum modo, soube o que todo ser humano perguntava. E pensou também que a resposta, talvez, fosse algum poder pequenino ou agigantado que ela juntava àquele que herdara dos seus ancestrais. Ah, se ela pudesse acender a luz do mundo, se ela pudesse acender todas as luzes, em todas as casas, em todas as dúvidas, quem sabe, ela fecharia os seus olhos para conceber os frutos do seu súbito entendimento. Um dia, Paulo lhe dissera que o amor era cego. Quem sabe, então, ela fecharia os olhos para submergir no amor, aquele outro desconhecido. E haveria, quem sabe, amor no amor e nas causas do ódio, amor na gratidão e nas causas do ressentimento, amor na luz e também na escuridão, amor até na loucura. Se Aureliano tinha mesmo de ir, adeus. Que ele muito se cuidasse. O que ela poderia fazer? Antes que ele seguisse por outros mundos, trancara as as portas pelas quais ela poderia entrar e, agora, Maria Flor só não lançava o seu caderno pela janela porque, no quintal, caminhavam formigas distraídas que ela não queria esmagar com aquelas folhas tão pesadas. Porque as formigas mereciam viver, porque todos eles mereciam viver e porque com ele, com aquele pequeno caderno tão confuso, ela não enlouquecera completamente, nem se suicidara enquanto a loucura passava por si, e era loucura, era loucura, sim. Mercado clandestino, códigos secretos, por que ela pensara assim? Não, ela não se suicidara, ela se recolhera ao seu íntimo até passar por todas as dificuldades e confusões do seu pensamento. E, agora, que o seu caderno estava chegando ao fim, que só faltavam mais algumas linhas, ela sabia: a vida era mesmo imensa. Então, no outro dia, quando amanhecesse, ela iria regar as plantas e cavoucar a terra em sua potência de vida, iria abrir a janela para o sol entrar, iria ligar para a psiquiatra e para a psicóloga que ela lhe recomendara, iria visitar a sua família, iria comprar um novo caderno e escrever cartas para o seu verdadeiro Paulo, iria passar no hortifrúti e comprar uma dúzia de pêssegos, guardar o perfume que eles deixassem em suas mãos, iria tingir os seus cabelos, talvez, de um vermelho muito vivo, iria costurar um novo vestido, muito azul, na máquina antiga da sua avó, iria comprar os livros para prestar o vestibular de Letras na USP, iria brincar com o pequeno Caetano com laços de fita, e se entregar à vida que, misteriosamente, insistia em continuar.
E que todos os Paulos daquela cidade, de onde estivessem, olhassem para cima e reparassem: no meio dos prédios altos, frios e cinzentos, todos os postes de luz – com seus fios – adormeciam de mãos dadas. Talvez, enquanto isso, uma outra flor se abrisse na sua janela e também escolhesse a vida. Então, Maria Flor pensou que vivia tão intensamente o momento presente que quase chegava atrasada ao momento seguinte, e que isso talvez fosse tudo, e que isso também fosse amor.
Mais tarde, abriu a gaveta novamente, olhou o estilete, mas pegou o caderno e começou a escrever uma história sua. Afinal, aquilo precisava de chegar ao fim: não, ela não seria mais a personagem de ninguém.
Delíricos de Maria Flor © 2019 by Rita de Cassia Santos da Cruz is licensed under CC BY-NC-ND 4.0